Agorafobia: o muro de vidro como ilusão democrática

muro de vidro
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Projeto de substituição de muro de tijolos por estrutura de vidro, intencionado por algumas universidades e centros culturais, não contribui para um desenvolvimento urbano inclusivo. Na verdade, faz parte do problema, pois continua avesso ao Outro.

As formas como a cidade brasileira utiliza-se dos seus espaços públicos e constitui sua paisagem urbana denotam muito mais do que uma simples razão estética. A bem da verdade, tanto prédios de luxo e moradias precárias, quanto parques, ruas e centros culturais, isto é, a configuração territorial, são resultados de processos mais complexos, tendo em vista que as recentes transformações na ordem urbanística decorrem também do modelo de desenvolvimento que se desenrolou no país.

É possível observar, a título de exemplificação, os impactos da acumulação de capital na dinâmica da vida pública num simples passeio pela cidade de São Paulo, onde há uma visível expansão dos espaços privados em detrimento dos públicos, com uma constante disseminação de condomínios e shopping centers, o que nos conduz para uma verdadeira cidade de muros voltada essencialmente para o consumo, movimento por meio do qual se exclui aqueles que não possuem o poder de compra necessário, os chamados indesejáveis.

Essa mercantilização da vida na cidade gera, consequentemente, a segregação sócio-espacial, a qual, somada a outros problemas sociais, bem como as opressões de gênero, raça e sexualidade, consolida o processo de suburbanização. Para analisá-lo, entretanto, é necessário inicialmente definir a distribuição do espaço público como efeito direto do modo de produção em voga. Em outras palavras, a cidade é resultado do capitalismo.

Nesse sentido, não objetivando me adentrar nos estudos de Lúcio Kowarick e David Harvey, vez que neste momento não é, para nós, oportuno, é particularmente significativo destacar que a estrutura da cidade é um termômetro do sistema socioeconômico, que absorve e reproduz suas mazelas e desigualdades, expressando-as, como pode ser observado nos efeitos negativos – abandono e degradação – que a financeirização da política habitacional e a pressão do mercado imobiliário exerceram e ainda exercem sobre alguns bairros da capital paulista, como, por exemplo, a Luz e os Campos Elíseos, nos quais as populações locais sofreram não só com a estigmatização, mas com o banimento e a gentrificação, consequências decorrentes não só de uma política falida de drogas, mas também da forma como o país se inseriu na nova ordem econômica neoliberal.

Por conseguinte, no decorrer da urbanização da cidade brasileira, houve, como resultado, a suburbanização, fenômeno não exclusivamente geográfico, mas, sobretudo, sociocultural, o que resultou numa contínua fragmentação e difusão do território (SANTOS, 2008). Tal processo contribuiu diretamente no aparecimento de inúmeros espaços periféricos, os quais são compostos em sua maioria por populações pobres, com baixo nível de escolaridade e desprovidas de serviços públicos de qualidade, tais como hospitais, bibliotecas, museus e centros educacionais. Portanto, vítimas de uma distribuição desigual dos elementos constitutivos da cidade e, em particular, da “baixa densidade de capital cultural objetivado” (BOURDIEU, 2015, p. 515).

No centro, concomitante a isso, há uma progressiva formação da arquitetura securitizada, ou seja, espaços privados, monitorados, fechados e direcionados notadamente para a residência e o consumo como lazer, o que corrobora para a formação de “microcidades” – os cercamentos urbanos. Registra-se, portanto, que esse rearranjo dos espaços de encontros, como condomínios de alto padrão com seus bosques particulares, universidades catracalizadas e galerias de arte não se traduz em uma maior democratização do espaço público, mas o oposto, basta ver a reação da classe média paulistana ao movimento de ocupação de shoppings centers denominado “rolezinho”, que foi inaceitavelmente reprimido tanto pela segurança privada, quanto pela Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Por outro lado, para uma melhor compreensão desse desenvolvimento urbano excludente, a este cenário convém destacar a influência do afeto. Em outras palavras, para além do consumismo exacerbado e da moral individualista, o surgimento de novos cercamentos urbanos não é resultante somente da dinâmica de ampliação dos espaços de rentabilidade que ocorrem a partir das privatizações, mas também de outros estímulos.

Ao passo que temos uma escalada da violência nos bairros periféricos, muito em decorrência da falta de presença do Estado – com exceção das suas forças policiais, é claro –, nos bairros das classes média e alta, diversamente, há um aumento da sensação de insegurança, fenômeno atrelado à valorização midiática da violência, o que torna possível o reflexo significativo do fear of crime no avanço da arquitetura securitizada como resposta a esses fatores.

A questão é de tal modo candente, pois é aí que se encontra a chave para o entendimento das alusões acima expostas. A cidade brasileira, que gradativamente se constitui como privatista e segregacionista é corolário não só da relação entre a extração de renda e o estímulo ao consumo, mas também da disseminação do medo e da insegurança social.

Deste modo, essas duas tendências descritas, cada vez mais presentes no tecido urbano, quase que num processo harmônico concretizam um conjunto de valores e contravalores. Quer dizer, partindo da ideia que a cidade é cada vez mais um espaço privilegiado e que a exclusão urbana não é somente geográfica e material, mas, acima de tudo, simbólica e cultural, há uma consequente ampliação das opressões de gênero, raça e sexualidade, vez que este processo os materializa.

Neste contexto, vê-se como é ingênua a pretensão de resolver o problema da exclusão e segregação urbana atribuindo a uma estrutura de vidro a função de inserção, dado que não enfrenta a “arquitetura-fortaleza” (DAVIS, 1993), pelo contrário, a intensifica. Trata-se de um arranjo precário, pois o muro de vidro não é uma mera resposta inefetiva à cidade isolacionista, mas, na verdade, é uma das suas mais completas expressões, já que é mais perverso à heterogeneidade social do que o próprio muro de tijolos. De fato, apesar de ambas as construções negarem a alteridade em um mundo que cada vez mais tudo se perfaz por meio do consumo, o vidro, além de excluir, mostra do quê os indesejáveis estão excluídos.

Por fim, a despeito desses fatos, graves em si, dado que se organizam como uma violência estrutural, não podemos precipitadamente formular respostas prontas e imediatas. No entanto, para além do relevante enfrentamento ao capital financeiro, as soluções necessariamente passam pelas universidades e os centros culturais, enquanto tais, assumindo-se como instituições que tem como um dos seus mais relevantes objetivos a contribuição para uma cidade mais acessível e justa, e não como locus privilegiado do conhecimento. Para isso, não bastam estruturas de vidros, sendo que muitas universidades e centros culturais, além das catracas que impedem a livre circulação não só de alunos e frequentadores, mas de eventuais interessados, ainda se utilizam de seguranças bem armados, câmeras e todos os outros tipos de dispositivos que transformam um espaço que deve ser efetivo na realização social em um verdadeiro sistema pan-óptico.

REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, Editora Zouk, 2015.

DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo. São Paulo, Editora Página Aberta, 1993.

SANTOS. Milton. A urbanização brasileira. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

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