Nas últimas semanas tem sido inevitável ouvir falar de La Casa de papel, o sucesso da série espanhola transmitida no Brasil pela Netflix foi tamanho que muitos dos espectadores não esperaram a liberação da segunda temporada pela plataforma de streaming e vasculharam a internet em busca dos episódios transmitidos pela rede de televisão espanhola “Antena 3” em 2017.
A série narra a ação de um grupo que se reúne para invadir a Casa da Moeda da Espanha, de início todos os passos dos assaltantes parecem meticulosamente calculados e sujeitos a um plano previamente estabelecido, contudo a situação vai paulatinamente fugindo ao que havia sido imaginado e problemas começam a aparecer. Apesar das qualidades do enredo e da trama, não é esse o assunto desta coluna.
Vamos falar daquilo que emerge em meio ao turbilhão de dificuldades que se forma e que viria a ser a canção-símbolo do assalto, a música italiana Bella Ciao, que passa a funcionar como espécie de trilha sonora de todos os momentos chave da trama. Desde então a música vem sendo compartilhada à exaustão nas redes sociais por pessoas das mais diferentes matizes políticas, de esquerda e de direita, sem que a maioria saiba o seu significado e a sua importância.
A melodia da canção possui origem remota nos tradicionais cânticos de trabalhadoras rurais italianas – em sua maioria migrantes sazonais da Emiglia-Romagna e do Vêneto – entoados como forma de ritmar e diminuir o peso do exaustivo plantio e colheita das lavouras de arroz da planície Padana.
Por sua vez, a letra e a repetição de algumas palavras possuem inspiração em uma canção folclórica denominada Fior di tomba, que se inicia com as mesmas palavras de Bella Ciao (“Una mattina mi son alzato”), com o passar dos anos mais e mais elementos foram sendo incorporados, todos vindos da cultura popular rural italiana.
Quando da invasão alemã à Itália na primeira guerra mundial, uma versão primordial de Bella Ciao foi entoada constantemente por membros da resistência italiana, no entanto ainda existiam algumas diferenças com relação a versão que seria consagrada pela História.
Com a ascensão do Regime Fascista de Benito Mussolini na Itália surge quase concomitantemente um movimento popular de resistência armada, cujos integrantes eram denominados Partigiani. O movimento da Resistência italiana se caracterizou por unir os mais diversos grupos a fim de resistir à tirania nazifascista, havia no seio da segunda renascença desde monarquistas até anarquistas, mas o movimento era majoritariamente composto por comunistas.
A Bella Ciao que conhecemos é um dos tantos cantos da resistência que eram entoados pelos Partigiani, entre eles: Fischia il vento e Musica leggera. É no seu âmago uma música da resistência antifascista italiana, de homenagem àqueles que se sacrificaram em prol da liberdade, como veremos na análise de seu texto. A música narra a história de um homem que acorda e se depara com a figura do invasor (simbolicamente os camisas negras) e decide se juntar à resistência mesmo que isso signifique sua morte em combate, uma vez que viver sob a dominação fascista é como a morte. Ao se despedir de sua mulher dizendo “bella ciao” ou, em tradução livre, “querida, adeus” o recém incorporado partigiano pede que se morrer, seja enterrado na montanha, na sombra de uma flor, para que todos que ali passarem vejam a flor que simboliza o partigiano que deu sua vida em nome da liberdade do povo italiano.
Bella Ciao é uma das canções mais lindas da resistência antifascista, representa o sacrifício máximo e é uma homenagem a todos aqueles que deram suas vidas em nome da liberdade do seu povo, dos seus ideais e em prol de uma sociedade mais justa e igualitária.
Poderíamos criticar a série e a Netflix pelo lucro que obtém de uma música que simboliza o exato oposto do que uma empresa privada defende, mas isso seria fazer uma leitura rasa da situação. Fato é que muitos que não conheciam a canção agora podem se interessar por pesquisar seu significado e contexto histórico, difundindo, assim, os ideais antifascistas e comunistas.
Atualmente, a canção é símbolo de diversos movimentos de esquerda, contra o neoliberalismo, a xenofobia e em oposição aos novos avanços do fascismo. No final do texto está a letra em italiano e sua tradução em português desta canção que é a própria “flor do partigiano que morreu pela liberdade”.
Original em italiano:
Una mattina mi son alzato,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
Questa mattina mi son alzato,
ed ho trovato l’invasor.
O partigiano, portami via,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
O partigiano, portami via,
che mi sento di morir.
E se io muoio da partigiano,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E se io muoio da partigiano,
tu mi devi seppellir.
E seppellire lassù in montagna,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E seppellire lassù in montagna,
sotto l’ombra di un bel fior.
E le genti che passeranno,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
E le genti che passeranno,
Mi diranno «Che bel fior!»
«È questo il fiore del partigiano»,
o bella, ciao! bella, ciao! bella, ciao, ciao, ciao!
«È questo il fiore del partigiano,
morto per la libertà!»
Versão em português:
Acordei de manhã
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
Acordei de manhã
E deparei-me com o invasor
Ó resistente, leva-me embora
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
Ó resistente, leva-me embora
Porque sinto a morte a chegar.
E se eu morrer como resistente
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
E se eu morrer como resistente
Tu deves sepultar-me
E sepultar-me na montanha
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
E sepultar-me na montanha
Sob a sombra de uma linda flor
E as pessoas que passarem
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
E as pessoas que passarem
Irão dizer-me: «Que flor tão linda!»
É esta a flor
Minha querida, adeus, minha querida, adeus, minha querida, adeus! Adeus! Adeus!
É esta a flor do homem da Resistência
Que morreu pela liberdade