Crivella, carnaval e cinzas

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Crivella e seus apoiadores da LIESA

O pastor Marcelo Crivella foi eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro sob o batuque da LIESA. A Liga Especial das Escolas de Samba, entidade representativa das escolas de samba carioca, foi fundamental na desconstrução da imagem pastoral pela qual passou Crivella no segundo turno carioca, onde amansou seu conservadorismo para vencer o ainda estreito mas corajoso Marcelo Freixo.

A LIESA é uma organização que conta com representantes das maiores escolas de samba do Rio de Janeiro. Responsável pela organização do carnaval desde 1985, em seu site, deixa claro seu posicionamento político:

“Sempre caminhando em sintonia com os objetivos da Prefeitura do Rio de Janeiro, as Escolas de Samba transformaram o seu desfile no maior espetáculo plástico/áudio-visual realizado a céu aberto em todo o planeta”.

A ânsia por mais compadrio com o poder público ficou mais elucidada nas últimas eleições. Prometendo ampliar o leque de subsídios dos donos da festa e aceitar o financiamento sui generis das escolas, a LIESA optou por apoiar o Pastor Marcelo Crivella na empreitada, homem avesso à festa e bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.

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A Igreja Universal do Reino de Deus não se denomina evangélica. Em 1995, dez anos depois da criação da LIESA, a Igreja Universal se negou a ser representada pela Associação Evangélica Brasileira no episódio do “chute da santa”. Seu papa, Edir Macedo, afirmava que sua igreja não pertencia a nenhuma denominação evangélica. Eram portanto, uma seita.
A IURD possui um projeto de poder explícito, que pode ser assistido diuturnamente na Record, antiga emissora paulista da quatrocentona família Machado de Carvalho. A IURD não tem qualquer diálogo com outra instituição evangélica e não participa de quaisquer cultos ecumênicos ou prega a tolerância com diferentes. Não conversam com padres, pais de santo ou sambistas.

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Em 2003, o historiador José Ramos Tinhorão em sua entrevista à TV Cultura, afirmava que o Carnaval havia acabado. Na época não tínhamos enredos comemorando longas dinastias ditatoriais ou Iogurtes Danone. O carnaval tornou-se pastoso e pasteurizado. Conforme o gosto do cliente. O Brasil for exportation. As temáticas geniais, como o grande desfile de Joãosinho Trinta pela Beija Flor, proibido de circular na avenida por ofender a moral cristã, hoje dão lugar a temas cada vez mais obtusos e desconexos com a realidade nacional.
O Brasil não cabe no carnaval.

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No fatídico carnaval de 1989, Joãosinho Trinta era um antigo carnavalesco heptacampeão do carnaval carioca. Já tivera dias melhores. Seu último título havia sido em 83. Excêntrico e de difícil trato, João queria reinventar-se naquele verão de 1989. Produziu, pela Beija Flor o memorável desfile “Ratos e urubus, larguem minha fantasia!”. Neste desfile, todo o brilho era reduzido ao preto e branco. As alegorias, normalmente recheadas de luxo, eram dominadas por fantasias de trapos, simulando o lixo, tema do enredo.
No centro do desfile, o antológico Cristo Mendigo. Uma réplica do Cristo Redentor às traças, ao lado dos desafortunados e das desventuras.
A noite calorosa do sábado, véspera do desfile, guardava uma surpresa para Joãosinho. Num daqueles momentos em que a vida parece verdadeiramente imitar a ficção, um oficial de justiça adentra ao barracão, notificando o carnavalesco que seu Cristo seria impedido de entrar na avenida. A alegoria principal do carnaval da Beija Flor estava proibida de entrar na Sapucaí por uma liminar judicial impetrada pela Igreja Católica.
A genialidade de Joãosinho fora posta a prova. Coagido pela justiça a abortar sua alegoria, optou por simplesmente cobri-la com plástico preto e entre seus braços cobertos, esticar uma faixa com os dizeres “Mesmo proibido, olhai por nós”.
Nas primeiras horas da manhã de domingo, o Cristo proibido entrou na avenida, envolto sobre os plásticos negros para o delírio de uma Sapucaí estupefata. Fernando Pamplora, responsável por narrar o carnaval daquele ano, bradava a plenos pulmões: “eu vou para a cadeia com João”.

Pior que a cadeia, Joãosinho ficou novamente com segundo lugar. Seu troféu de 1989 foi a história.

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Em 1989, Marcelo Crivella era diretor de planejamento da EMOP (Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro), nomeado pelo então governador e hoje ministro, Moreira Franco.
Proibiram o enredo carnavalesco errado.

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O financiamento do carnaval é tão transparente quanto as licitações da Petrobras, as verbas de propaganda oficial da Presidência da República ou as eleições da CBF. A verdade velada por trás da história contada. É difícil imaginar uma escola de samba conseguindo empréstimos bancários nas alturas de milhões tendo como garantia velhos barracões. A saída mais óbvia é aquela que sempre tem dinheiro na mão.
O jogo do bicho é responsável pelas maiores belezas do carnaval carioca. Não fosse o carinho dos mecenas – muitos deles homenageados ano a ano pelas escolas afilhadas – não teríamos desfiles estonteantes e sambas inesquecíveis. O carnaval carioca agradece

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Era uma manhã quente na capital federal, contrastante com o gélido inverno de 2005. No hangar do aeroporto federal o então deputado João Batista, colega do bispo Crivella na IURD, era preso por portar numa maleta a quantia de 6 milhões de reais.
Em 2017, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, bispo, diminuiu em 50% o subsidio para as escolas de samba do Rio de Janeiro. Todas da LIESA. Sua decisão política é justificada pelo populismo mais rasteiro: tiraria o dinheiro da festa para dar às creches.
O orçamento para educação na cidade do Rio de Janeiro é de 5 bilhões, a soma total dos incentivos para o carnaval na Sapucaí, já com o corte, é de infimos 12 milhões. Ou duas malas de João Batista, conforme o gosto do cliente.