A asfixia ao Habeas Corpus

Habeas Corpus
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(…) atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, [que] assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, (…), na luta contra a corrupção, buscando deste modo, os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria”.

[Esse trecho foi retirado da introdução ao AI-5, mas sim, eu também achei que fosse das “Dez Medidas Contra a Corrupção”.]

O Habeas Corpus, como aqui concebido dentro da “mais memorável contenda jurídica constitucional da América Latina” (Pontes de Miranda), é sem sombra de dúvidas o principal instrumento de controle de ilegalidades dentro do Processo Penal no Brasil. Não falta quem, dentro do mundo jurídico, de forma levemente cafona o apelide de “remédio heroico”.

E, justamente por isso, sempre foi combatido nos momentos mais autoritários de nossa história.

A “Doutrina Brasileira do Habeas Corpus”, ou a jaboticaba. Os críticos à utilização do Habeas Corpus como feita no Brasil corriqueiramente afirmam se tratar de uma vulgarização do instituto concebido pelos lordes ingleses séculos atrás.

Sim, de fato, o writ of habeas corpus concebido na Inglaterra nada tem a ver com o aqui praticado. Lá, tratava-se de um meio para assegurar que alguém preso fosse levado a um Juiz, que então avaliaria se a detenção era justa. Algo, portanto parecido como um recurso destinado a garantir que os presos tivessem direito a uma “audiência de custódia”.

Contudo, trazido ao Direito brasileiro já no 1º Reinado, incorporando alguns elementos da tradição ibérica, o Habeas Corpus desde o início foi legislado de forma mais expansiva, tendência que se manteve no 2º Reinado e no início da República.

Mas, se o HC formalmente se distanciava de sua origem, tal fato era ignorado pelos juízes que insistiam em tratá-lo como se na Inglaterra estivessem. Aí que ganha destaque a figura de Rui Barbosa.

Dedicado a torcer os tribunais brasileiros, Rui Barbosa, no início do século XX, buscou usar o Habeas Corpus para resguardar todo o tipo de direito que pôde imaginar. Tanto fez que conseguiu furar o bloqueio então existente no Supremo Tribunal Federal, criando por meio do Habeas Corpus, até mesmo as bases do que virá a ser posteriormente o mandado de segurança.

Ainda no âmbito do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Pedro Lessa construirá uma terceira via entre o “tudo” de Rui Barbosa e o “nada” que vigorou na prática anteriormente: o Habeas Corpus como uma ação dedicada a levar ao conhecimento de uma autoridade superior qualquer ilegalidade capaz, ainda que de forma remota, de levar alguém a ser preso, sem a necessidade de se aguardar o trâmite normal dos processos. Conceito esse que permaneceu, razoavelmente, intocado até os dias atuais.

Então, sim, o Habeas Corpus como no Brasil utilizado talvez seja algo só aqui existente – uma jabuticaba -, o que apenas reflete o seu desenvolvimento em um processo profundamente nacional.

Os retrocessos autoritários e, mais recentemente, utilitaristas. Como é de se imaginar, a guinadas autoritárias em nossa história, seguiram-se restrições ao Habeas Corpus. Ainda que nem sempre tenha se chegado à restrição formal, como no AI-5, basta que os Juízes parem de reconhecê-lo, para que perca sua eficácia. Contudo esse não é o objeto do presente texto.

Mais recentemente, a partir de 2009 e com mais força desde 2012, o Supremo Tribunal Federal (e consequentemente o Judiciário) passou a criar obstáculos ao uso do Habeas Corpus. Para tanto, criou-se a seguinte vulgata: o manejo indiscriminado do instrumento seria uma das causas do gargalo do Judiciário. Obviamente, nunca mencionaram que os processos da área penal, na época, era, aproximadamente 5% dos que chegava aos tribunais superiores (portanto a parcela que cabe ao Habeas Corpus é ainda menor). E desde então, finge-se não ser de fácil constatação também que tais restrições nunca implicaram numa queda real no número de procedimentos[1].

Já na atualidade, uma parcela significativa do Ministério Público e do Judiciário traz um novo discurso. Em verdadeira distorção semântica (e teórica), tornaram a palavra “garantismo” sinônimo de “excesso de garantias” e, consequentemente, o colocaram como um dos grandes obstáculos ao combate à corrupção. E, nesse ímpeto, buscam equiparar o respeito a determinadas garantias processuais à impunidade.

Logo, em uma das “Dez Medidas Contra a Corrupção”, há alterações nos dispositivos legais que tratam do Habeas Corpus para, em síntese, restringir o uso do Habeas Corpus contra nulidades praticadas no curso processual, assim como para que caso reconhecido algum ato ilegal, seja possível remendar o processo sem grandes prejuízos à acusação.

Aos leitores que chegaram até aqui, eu sei o que vocês estão pensando. O que temos a ver com isso:

Essas restrições a tão importante instrumento de garantia no processo penal justamente não despertam grandes reações na sociedade, porque conectadas a uma ideia de fundo de que, ainda que sejam prejudiciais, prejudicarão apenas alguns poderosos e endinheirados.

Obviamente, não se pretende negar aqui que a Justiça trata desigual ricos e pobres. De novo, isso é óbvio. Contudo, são importantes alguns dados, extraídos da pesquisa coordenada por Thiago Bottino na Fundação Getúlio Vargas:

  • Entre 2008 e 2012, a Defensoria Pública impetrou 30,8% dos Habeas Corpus destinados ao Supremo Tribunal Federal e 51,9% dos do Superior Tribunal de Justiça;
  • Desses HCs, a Defensoria obteve sucesso (ainda que parcial) em 66,4% dos casos no STJ (contra 29,6% da advocacia comum) e 43,2% dos casos no STF.
  • Os crimes nos quais os HCs tiveram maior sucesso são, na ordem: latrocínio, infrações cometidas por menores de idade, roubo e furto.
  • Sendo mais específico na tese que era discutida, a aplicação do princípio da insignificância nos crimes de furto teve 37% de sucesso.
  • E mais, o estudo demonstra que a aplicação de regras básicas do Direito Penal como dosimetria da pena (leiam: total da pena) e regime inicial (fechado, semiaberto ou aberto) possuem taxas de sucesso acima dos 30% nos crimes de roubo (nesse chega a 62%), furto e tráfico. Isso é muito grave, em pelo menos 30% dos casos juízes de 1ª e 2ª instância falharam em aplicar regras básicas.

O estudo revela muitos outros dados interessantes, sendo recomendada sua leitura aos que tiverem interesse em maiores detalhes. Mas fica claro que o Habeas Corpus, dentro da prática jurídica, é um relevante instrumento de combate a ilegalidades e não só para os ricos.

Mas por que então não se vê debate fora de algumas rodas especializadas a respeito das tentativas de se restringir o Habeas Corpus?

Porque a maior parcela da sociedade é extremamente sensível a narrativa oferecida pela imprensa (e aí estou longe de me referir apenas aos grandes veículos, a mídia de esquerda, nesse ponto, está no mesmo barco) de noticiar, com ares de credulidade e indignação, apenas quando algum poderoso é liberado por uma decisão de tribunais superiores.

Então é fundamental que o campo progressista saia dessa mistificação que só serve a interesses repressivos. É preciso que, ainda que no horizonte limitado dos pressupostos atuais, a esquerda se conscientize da importância que determinados instrumentos jurídicos possuem em um salto civilizatório do Estado brasileiro.

Do contrário, continuará a se indignar com o encarceramento em massa praticado no país, enquanto aceita passivamente a asfixia do principal instrumento processual a combatê-lo.

 

[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Processos: Protocolados, Distribuídos e Julgados por Classe Processual – a partir de 1990-. Brasília, DF, 2015. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=estatistica&pagina=pesquisaClasse.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Relatórios de Estatística. Brasília, DF, 2010-2014. Disponível em http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?vPortalAreaPai=183&vPortalArea=584.