A disputa pela infraestrutura portuária brasileira – O fatalismo reincidente

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Antes de afundar completamente na turbulência política criada pelo seu próprio grupo, Michel Temer objetivava proceder mais um “lote de concessões”, como parte do que chamou de Programa de Parcerias de Investimento (“PPI”). Tal programa promoveu uma iniciativa chamada “Programa Crescer”, que prometia licitar 34 projetos nas áreas de transportes, energia, saneamento básico, mineração e loterias. No entanto, mesmo antes de começar, tal projeto também afundou.

A análise dos projetos revela uma aproximação liberal das infraestruturas elencadas. Tal apelo, arco-reflexo reincidente na história nacional, é mais uma vez a tentativa de capitalizar os cofres públicos vendendo (ou concedendo) infraestruturas críticas e rentáveis por longos períodos e com taxas de retorno garantidas. Do ponto de vista do investidor estrangeiro, é a transformação do dinheiro remunerado a taxas negativas no mercado internacional para a reconversão à taxas de 8% ou 10% de retorno no Brasil e, principalmente, garantir acesso privilegiado a mercados relevantes. Do ponto de vista nacional, é vender uma infraestrutura por certo período e conseguir um empréstimo a um custo menor do que o captado no mercado financeiro. Como a garantia é o direito de exploração do próprio bem (ou o bem em si), o risco do privado é diminuído ao nível de influência na estabilidade política do país concedente.

Essa poderia ser uma história nova, mas não é. Com tantos pretensos detalhes modernos (taxa de retorno, retorno sobre patrimônio, value for money etc), existem paralelos relevantes entre o “Projeto Crescer” com a “Abertura dos Portos” de 1808. A começar pelo fato de um governante, em atendimento aos interesses externos, ceder acesso ao mercado que detém em troca de favores políticos. Em 1808 estava em jogo o acesso ao mercado de insumos português, com produtos altamente comercializáveis nos mercados desenvolvidos da época. Na atualidade, está em jogo o mercado consumidor brasileiro e os insumos nacionais, que permanecem relevantes na arquitetura econômica mundial. Antes, as reuniões suspeitas eram com emissários ingleses. Atualmente, as discussões se dão com a CIA.

Não se entenda a presente análise como uma repúdia em essência às parcerias internacionais. Não é do que se trata. É no entanto, uma necessária reflexão sobre o que a Constituição Federal de 1988 buscou ao estabelecer que o mercado interno deve ser protegido, garantindo o bem-estar e a autonomia (art. 219). Tais projetos apresentados pelo atual governo, em essência, vão na contra-mão deste objetivo. A experiência brasileira revela que a subserviência econômica internacional nunca garantiu a autonomia necessária para a produção do bem-estar da população. Ao contrário, a subserviência econômica serve ao depauperamento da economia nacional e à ainda maior subserviência aos investimentos estrangeiros. Infelizmente, do ponto de vista do sistema, ambos os lados perdem: os brasileiros perdem sua soberania econômica e aos estrangeiros subsistem projetos medíocres e desconectados para investir.

A estratégia internacional é clara e previsível. Barganhar, oferecendo vantagens políticas aos políticos locais no cenário internacional, para garantir previsibilidade dos investimentos realizados. A estratégia nacional pode ser outra, para além de obedecer a barganha estrangeira: dar as mãos aos investidores internacionais – representantes de interesses externos – para garantir o financiamento de um projeto nacional. Óbvio que as empresas estrangeiras podem entrar no Brasil e investir, mas tais investimentos se destinarão a dar cabo do projeto determinado pela estratégia brasileira. Quando o investimento foi o Brasil, o retorno sempre foi garantido. Não há uma necessária vinculação do dinheiro ao projeto estrangeiro, como recorrentemente o discurso derrotista insiste em pregar. Investe-se no melhor projeto e, enquanto inexistir projeto no Brasil, o argumento é que “qualquer projeto é melhor do que nenhum”.

O caso portuário pode, novamente, servir de exemplo. A história indica que a legislação brasileira sobre o tema foi, no início, permissiva com os parceiros estrangeiros. As cartas forais na colônia, que em essência privatizavam as áreas reais portuárias, nunca permitiram maior crescimento do que meia dúzia de trapiches e pequenos tocos de atracação. Foram as iniciativas nacionais, do período Vargas e JK, que garantiram as bases que tornaram o Brasil um alvo de relevantes investimentos de infraestrutura no cenário econômico mundial.

Essa vinha sendo a reconversão novamente promovida pela Lei n. 12.815/13. Embora a modernidade tenha resolvido parte do comércio nacional por bytes, fato é que um produto permanece sendo necessário no mundo físico para atender necessidades de consumidores. Os portos, nessa célula econômica, seriam o citoplasma, regulando qual é a melhor forma e quantidade de absorver os nutrientes necessários, permitindo também a dispensa daquilo que será trocado com o meio em sentido inverso. Ponto que passa a ser nodal é: quem deve controlar e coordenar tal capacidade?

Os primeiros editais, embora muito mal elaborados sob o ponto de vista técnico, traziam consigo uma quebra violenta no domínio internacional. Fato observável, é que a prometida “Lei de Modernização dos Portos” (Lei n. 8630/94), de cunho liberal, não foi capaz de promover a falácia da modernização (tal qual as cartas forais não fizeram portos surgir em meio a trapiches), sustentando que “muito dinheiro seria feito” com a concessão dos portos como um “quase aluguel” das áreas nacionais de costa. Dado que, na perspectiva logística, os portos são necessariamente um ponto de conversão de mercadorias (a fim de que a escala viabilize seus vultosos investimentos), deixar que o privado controle a área como bem entender, significa mais do que a privatização do ativo: significa a privatização da capacidade de criar monopólios. Os editais de 2013, ao contrário, construíam uma lógica de que o privado deveria ocupar e operar o porto, mas garantir “o máximo de eficiência” e o “acesso de terceiros” àquela infraestrutura, criando maior dinamismo do equipamento público na promoção da competição e sofisticação do mercado interno brasileiro.

Isso era uma afronta. Abrir os portos a esta ingerência pública promovendo competição legítima nos mercados finais, quebraria a proteção de mercados que permitiu a diversos players internacionais praticar margens financeiras infladas. Esta reflexão é simples: basta analisar os motivos que levariam o consórcio Louys-Dreyfus e Cargill a pagar R$303.069.000,00 (trezentos e três milhões e sessenta e nove mil reais) por um porto em Santos, enquanto o segundo colocado – empresa nacional – ofereceu R$5.000.000,00 (cinco milhões). Tal econômico só fecha se o valor pago pelas estrangeiras possa ser repassado ao seu consumidor final ou aos fornecedores da cadeia verticalizada às quais pertencem. Com a inexistência de outras áreas disponíveis para a movimentação de grãos no porto de Santos e a capacidade das duas empresas procederem a utilização de 100% da infraestrutura disponibilizada, a estratégia é simples e previsível: utilização 100% da área arrematada e evitarão que outros concorrentes se valham do escoamento de grãos pelo porto, criando vantagem competitiva análoga a um monopólio.

No caso de Santos, a soja é um insumo para produtos produzidos no exterior. Como o centro de receita é a Europa e o centro de custos é o Brasil, parece razoável entender que os montantes que excedem o valor real da infraestrutura de Santos em si (desconsiderando a posição monopolista) será repassado aos produtores. Basta que tais empresas, que representam oligopsônios mundiais, precifiquem a soja em valor minimamente abaixo no cenário internacional: o restante dos fornecedores no planeta, inclusive no Brasil, pagarão a conta. Como tais produtores se concentram nos países subdesenvolvidos, mais uma vez a conta vai para o lado mais fraco.

Análise diferente ocorre no segundo leilão que “escapuliu” no setor portuário. Na área de combustíveis, o consórcio Raízen e BR arrematou todas as áreas disponíveis em Santarém pelo valor total de R$68.200.000,00 (sessenta e oito milhões e duzentos mil reais). As duas empresas em conjunto representam, segundo dados do próprio SINDICOM, algo próximo a 60% do mercado do norte. As demais concorrentes pararam seus lances em R$18.000.000,00 (dezoito milhões).

Aqui, a estratégia será outra. Como o mercado de combustíveis no norte é consumidor (ou “short”) e não produtor/exportador (ou “long”), fato é que o sobrepreço será repassado ao consumidor local. É previsível, nestes termos, que as duas arrematantes tragam para dentro de sua infraestrutura outra empresa como a Ipiranga, consolidando mais de 80% do mercado e ganhando força dinâmica suficiente para impor aos consumidores locais que paguem pelo lance realizado no leilão.

Qual a vantagem da Lei n. 12.815/13 então?

Simples. Para que funcione a estratégia descrita anteriormente, os portos em questão deverão ser exclusivos. Se não na formalidade dos contratos, na prática. Isso enseja que, quando os detentores arrematantes das infraestruturas ocuparem a totalidade do equipamento logístico, o Poder Público reaja por dois caminhos:

  • Obrigue os detentores da infraestrutura a abrir sua estrutura ou realizar novos investimentos sob o pagamento de taxas;
  • Licite novas áreas o mais rápido possível para que novos entrantes possam entrar nas áreas.

A ideia seria diluir a estratégia privada naquilo em que ela não se coaduna com a nacional. Quanto ao primeiro ponto, já existe regulação na esfera portuária pendente de aprovação para dar cabo da missão estratégica de tais estruturas (Propostas de Resoluções  ANTAQ n. 3.707 e 3.708). Quanto à segunda, a abertura de novas áreas para licitação seria procedimento rápido, se estruturada dentro de um plano abrangente e modular de licitações, que compusesse um time sênior e competente na condução dos estudos necessários internamente. Certamente viriam questionamentos com relação à desequilíbrios econômicos-financeiros, mas… dado ao fato de as infraestruturas funcionam para atender a totalidade de negócios verticalizados, não haveria de existir reequilíbrio possível.

Não há necessidade de tamanha subserviência na questão infraestrutural do Brasil. O mercado brasileiro é altamente rentável e, apesar das turbulências e rupturas institucionais frequentes, a previsibilidade do cumprimento dos contratos é bastante alta. Falta-nos, no entanto, um projeto bem elaborado e audacioso de país, que permita se apresentar às demais nações de maneira segura e séria. Até o momento, os caminhos percorridos são medíocres e não falam com a real capacidade do povo brasileiro.