Adam Smith em São Paulo

Botão Siga o Disparada no Google News

O Brasil ocupa uma posição paradoxal na hierarquia internacional. Somos, por exemplo, o país mais megabiodiverso do planeta, mas registramos patentes na inversa proporção da quantidade de brasileiros que são encarcerados no nosso sistema prisional (já alcançamos o posto de quarta maior população carcerária do mundo). Estamos, ainda, entre as dez maiores economias do planeta, mas também entre os dez países mais desiguais.

A lista de contradições poderia estender-se. O fato é que o brasileiro deseja poderosamente escapar da armadilha nacional, aquela que nos prende ao passado enquanto nos tortura eternamente com uma promissora visão de futuro,  cuja única razão é o nosso incontestável potencial natural, territorial, populacional e criativo.

Inquestionavelmente, só seremos descartados como “país do futuro” quando o futuro chegar. Isso parece estar inserido no nosso destino como nação. É a questão nacional, portanto, que se coloca e se colocará diante de nós, geração após geração.

A QUESTÃO NACIONAL

Muito se discute no cotidiano acerca dos problemas brasileiros. Em todos os cantos, dois assuntos predominam: a corrupção das nossas elites e o desempenho dos índices econômicos.

Poderia se argumentar que o que diferencia o Brasil de países desenvolvidos é a ampla e escatológica corrupção que nos assola e desvia a finalidade dos recursos públicos, mas isso seria fechar os olhos para os incontáveis casos de corrupção envolvendo setor público e privado mundo afora, como a própria crise financeira de 2008, de dimensões globais, evidenciou[1]. Logo, não é a corrupção a nossa questão nacional, e não será uma faxina ética e moralista em abstrato que nos fará um país soberano e desenvolvido.

Por outro lado, o debate sobre desenvolvimento econômico foi substituído nas últimas décadas por termos fundamentalmente menos abrangentes. Crescimento, inflação, exportações, por exemplo, se apresentam como componentes da discussão mas são inerentemente incapazes de traduzir, em seus aspectos quantitativos e técnicos, a essência da ideia de desenvolvimento.

A questão verdadeiramente nacional do Brasil pode ser resumida em uma única palavra: subdesenvolvimento. Essa é a nossa especificidade.

SUBDESENVOLVIMENTO

Após a reabertura democrática, inúmeros governos fizeram uso retórico do termo desenvolvimento. Num primeiro momento, integrar o Brasil na globalização tornou-se tão imperativo quanto remediar os corrosivos índices de inflação. Em seguida, alçar o Brasil a conquistas inéditas tornou-se motivo de orgulho e tarefa de governo, para recentemente assumirmos a missão de “recolocar o país nos trilhos”.

Em nenhum desses momentos a sociedade brasileira se deparou com objetivos claros e concretos de transformação estrutural da nossa condição subdesenvolvida. Nenhum dos governos recentes propôs à sociedade um projeto nacional de desenvolvimento, apenas programas difusos e/ou de curto prazo, naturalmente frágeis e sensíveis aos mais conjunturais dos obstáculos. No atual momento, é categórico dirigir as energias da nação para a compreensão do significado histórico e estrutural do subdesenvolvimento brasileiro.

O economista norte-americano W. W. Rostow propôs um esquema teórico para analisar a trajetória de cada economia nacional. Seu trabalho tornou-se um clássico por interpretar que há um conjunto de cinco etapas lineares pelas quais todas as economias passam até se tornarem desenvolvidas.

A fragilidade dessa doutrina logo se percebeu. É de Celso Furtado (1920-2004), maior economista brasileiro[2], a ideia de que o subdesenvolvimento não constitui uma etapa do desenvolvimento. Para ele, o subdesenvolvimento é uma especificidade, uma conformação  histórico-estrutural, que decorre da consolidação da posição de um país na hierarquia da divisão internacional do trabalho como consumidor da tecnologia propagada a partir dos países desenvolvidos e exportador de bens muito menos sofisticados e mais sensíveis aos ciclos e crises de demanda internacional: a economia mundial capitalista é dividida entre países centrais e países periféricos, e a linha que os separa é a capacidade de produzir e difundir progresso tecnológico.

1776 

No período entre 1930 e 1980, o tema do desenvolvimento econômico pautou a política nacional. Entre 1950 e 1964, inclusive, produziu-se a mais ousada tentativa de superação do subdesenvolvimento da história brasileira. É desse período a revolucionária experiência getulista, o extraordinário salto substitutivo de importações dado pelos cinco anos de governo JK e o insubordinado projeto das Reformas de Base de João Goulart. Diante da consolidação de uma ordem internacional globalizada, no entanto, o Brasil adotou postura passiva.

A nova ordem econômica sustentou-se em torno de alguns consensos: i) desfazimento de barreiras nacionais para livre movimentação do capital; ii) garantia da credibilidade do mercado financeiro para atrair mais investimentos externos; e iii) adoção do tripé macroeconômico por parte dos países em desenvolvimento (câmbio flutuante, juros altos, e inflação sob controle), também com o propósito de assegurar estabilidade e a confiança do mercado.

Entrelaçados, esses fatores contribuíram para que: i) os juros altos fizessem o investimento financeiro mais lucrativo do que o produtivo; ii) a livre movimentação do capital, somada a juros exorbitantes, fizesse o câmbio flutuante a se valorizar, reduzindo a competitividade de sistemas industriais ainda imaturos; iii) a política monetária (instrumento) se sobrepusesse às políticas de desenvolvimento (objetivo), ao invés do contrário, como deveria ser.

Os resultados são preocupantes. Como indica um recente estudo da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), o Brasil sofre hoje um processo de desindustrialização precoce. Se na década de 1970 a indústria brasileira correspondia a praticamente 30% da geração de emprego e valor agregado no país, em 2016 passou a refletir apenas 10,9%[3].

São Paulo, o mais importante centro industrial do país, por exemplo, demonstra estar diminuindo sua participação no conjunto do PIB. A indústria paulista chegou a recuar 8,5% em 2015[4].

Em “A Riqueza das Nações”, livro de 1776, o escocês Adam Smith deu a tônica do novo mundo que surgia com a Revolução Industrial. Fundamentando-se na importância da divisão do trabalho nas atividades manufatureiras, Smith afirmou que as nações mais ricas “geralmente superam todos os vizinhos na agricultura e nas manufaturas: geralmente, porém, distinguem-se mais pela superioridade na manufatura do que na agricultura[5].

Em recente trabalho, o economista Paulo Gala demonstrou como economias complexas,  as quais combinam capacidade de produzir bens não-ubíquos com a diversificação de sua pauta exportadora, atingem maiores níveis de renda per capita do que as demais[6]. É na indústria, portanto, que há maior potencial para divisão de trabalho, especialização da produção, e incidência de inovações tecnológicas, o que necessariamente leva a maiores ganhos de produtividade. Dado o baixo nível de encadeamento das etapas produtivas, a agricultura não é capaz de produzir o mesmos ganhos de escala que a indústria permite.

Na essência, isso nos mostra que o princípio básico de Smith acerca da riqueza das nações não pode ser ignorado nos atuais tempos do capitalismo. 

1951 

Os instrumentos necessários para superar o subdesenvolvimento não se encontram à mostra numa vitrine internacional. Apesar disso, toda a arquitetura jurídica e econômica instalada nas últimas décadas baseou-se na ideia de que o liberalismo atualizado, inserido no seu marco de livre circulação de capital, resolveria o problema de escassez de oportunidades, desemprego estrutural e obsolência produtiva dos países mais pobres. Na ponta de lança desse processo, ergueram-se as companhias multinacionais.

Hoje, contudo, sabemos que as mesmas empresas que correspondem a mais de 50% do comércio mundial, respondem por apenas 2% dos empregos no planeta. Naturalmente, um país subdesenvolvido como o Brasil não pode depender de pretensas soluções automáticas, e mesmo estando entre os dez países que mais recebem investimento estrangeiro direto (IED), o subdesenvolvimento brasileiro persiste[7].

O economista estoniano Ragnar Nurkse (1907-1959), um dos pioneiros da discussão acerca do desenvolvimento, pode ter uma explicação para isso. Conforme ele notou: i) a dependência de investimentos estrangeiros em países pobres pode engendrar a formação de estruturas produtivas baseadas na extração de recursos naturais e baixa diversificação; e ii) quantidades significativas de financiamento externo tendem a custear a introdução de padrões de consumo que emulam o estilo de vida dos países desenvolvidos[8].

Em sua vinda ao Brasil, no ano de 1951, uma das muitas discussões que levantou foi essa relativa à repercussão dos investimentos estrangeiros. Não é preciso ir muito longe para constatar que com uma pauta exportadora menos sofisticada e menos diversificada do que a dos países desenvolvidos, a emulação de tais padrões de consumo se traduz em significativos déficits para os países subdesenvolvidos.

De acordo com Ragnar Nurkse, o  financiamento do desenvolvimento deve vir principalmente do próprio país em desenvolvimento. Para ele, o capital é feito em casa.

1952 

No ano de 1952, o processo brasileiro de industrialização já havia emplacado. O país atravessava um dos períodos mais vigorosos de substituição de importações através do desenvolvimento de sua indústria e estava às vésperas dos cinco intensos anos de crescimento econômico do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), os quais deram um caráter irreversível às transformações estruturais que haviam sido iniciadas na década de 1930, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder.  

Um ano mais cedo, em 1951, o economista Ragnar Nurkse havia participado de conferências no Brasil. A importância do ano de 1952 ressaltada aqui deriva do debate teórico no qual Celso Furtado se envolveu com o economista estoniano[9].

Furtado compreendeu que a renda gerada a partir de investimentos com capital nacional também pode acarretar desequilíbrios externos, e não apenas a gerada a partir de investimentos estrangeiros, como Nurkse havia apontado. Isso porque o consumo da renda gerada se direcionada de acordo com a propensão a importar do país. O argumento furtadiano, portanto, estava em pleno acordo com a industrialização substitutiva de importações: para superar os gargalos da economia brasileira, era necessário produzir internamente os bens então importados.

Quatro anos depois, Juscelino Kubitschek implementou um bem-sucedido modelo de desenvolvimento pautado na cooperação entre capital estatal, capital privado nacional e capital privado estrangeiro. Seu programa claro e seu objetivo concreto era industrializar o país para superar o subdesenvolvimento. Disso se tratou o Plano de Metas.

Retornando a Furtado, seu pensamento dá especial importância à regulação da liquidez, e está longe de justificar o recurso descriterioso ao capital estrangeiro. Luiz Carlos Bresser-Pereira expressa bem as condicionantes da entrada do investimento externo, reunindo o que de mais proveitoso Nurkse e Furtado puderam nos transmitir sobre o tema: “investimentos diretos [estrangeiros] são desejáveis quando trazem tecnologia e, como acontece na China, não financiam déficit em conta corrente, mas compensam investimentos do país no exterior[10].

O fato de que em 2016 o IED (investimento estrangeiro direto) no Brasil superou, em % do PIB, até mesmo países como a China e a Índia, é no mínimo curioso. Apontamentos recentes, no entanto, demonstram que o IED não tem contribuído para aumentar a capacidade produtiva, mas sim tem reagido à diferença entre as taxas de juros internacionais e as taxas de juros domésticas. Isso significa que, quando os juros caem nos EUA, o capital flui para o Brasil em busca de ganhos financeiros mais elevados, expressando sua natureza mais especulativa do que atrelada à valorização de ativos reais[11].

Uma leitura atenta do escocês, do estoniano e do brasileiro pode nos trazer pistas sobre o caminho a ser trilhado. O que simplesmente não podemos é permanecer imobilizados diante do esfumaçante véu ideológico – à esquerda e à direita – que se recusa a nos revelar que, entre todas as questões, aquela realmente indispensável é a questão nacional.

Afinal, se visitasse São Paulo, núcleo irradiador do cosmopolitismo liberal hoje, Adam Smith talvez nos presenteasse com alguma lição incisiva sobre o atraso que representa a nossa desindustrialização. Ou talvez não, já que os países desenvolvidos – e seus agentes – insistem em chutar a escada pela qual subiram.