Ao Povo Brasileiro – Decifrando o Brasil

Caio Prado Júnior
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Brasileiros,

As ruas em nosso país parecem calmas. Depois de tantas lamentáveis cenas de agressão, palavras duras e segregação de nossos velhos amigos, as ruas parecem surpreendentemente calmas: tensão ficou apenas nos olhares e no silêncio daqueles que permanecem em lados opostos do muro. Tal fenômeno, para o espírito apaziguador e conformista, pode parecer positivo. No entanto, a exacerbação dos discursos ódio tem um lado positivo: é com o azedume da raiva que se revela o caráter e os reais objetivos de nossos compatriotas.

O tabuleiro brasileiro é complexo. Muitas forças colidem e inúmeros projetos – em grande parte individualistas e estrangeiros – tentam se acomodar olhando a partir de suas perspectivas. A busca pela ancestralidade da “causa nacional” é reveladora. Qual o sentido deste colosso territorial que explica e conforma a sua existência e sua nação?

Na busca da resposta, a nomenclatura do nosso país é interessante. Existem documentos que revelam lendas muito anteriores ao ano de 1500 sobre uma ilha no atlântico por nome “Hy Breasil”. Por outro lado, os documentos mais recentes se assentaram sobre a ideia de que a coloração das madeiras da costa teriam dado a impressão de um fogaréu, ou “brasil”. Esta informação, seja do vocábulo céltico para sulfurero de mercúrio, seja do português para o rubro das madeiras, revela que o aspecto econômico das trocas comerciais foi tão determinante, que o país ficou conhecido pelo seu produto de exportação e não pelas suas localidades correspondentes na metrópole. O Brasil foi olhado, por qualquer dos povos que tocou a sua costa, como um fornecedor de insumos produtivos, não como uma alternativa à sua terra natal.

Esclarece Caio Prado Júnior que o Brasil nasce como consequência da empreitada econômica portuguesa. Perdoe-nos os fenícios, gregos e celtas, mas suas lendas não sobrevivem ao fato de que a atualidade brasileira é dada pelo fato de que, na perspectiva capitalista, o Brasil é um centro de produção europeu (não seu parceiro comercial). Em que pese sua grandiosidade e história peculiares, com alguns soluços de emancipação nacionalista, o Brasil permanece subordinado à estratégia econômica da centralidade metropolitana. O Brasil é uma grande fazenda, cuja administração fica além mar. Como disse Oswald de Andrade: o país da sobremesa.

Essa perspectiva se irradia para outras matizes. Do ponto de vista econômico, somos uma “filial longínqua dos países desenvolvidos”. Como filial, não interessa à “matriz” (ou matrizes) alocar as competências estratégicas da companhia em suas unidades produtivas locais, tampouco pagar os melhores salários para reter os talentos ou mesmo investir em tecnologia. A filial deve permanecer subordinada à matriz, a qual exporta e se livra das obrigações menos estratégicas e mais arriscadas, focando, cada vez mais, em dedicar-se às discussões de relevo.

Pensar o Brasil como parte da empresa colonial permite decifrar inúmeros mistérios. Por exemplo, por que floresce no nosso povo uma admiração pelos países desenvolvidos? Obviamente, a aspiração da filial é ser promovida à matriz, mas é fato que, enquanto permanecer atendendo aos interesses de seu centro decisório, esta inversão jamais acontecerá. Como a montanha não vem a Maomé, Maomé vai à montanha: o sonho dos trabalhadores brasileiros é entrar em uma empresa multinacional e serem “expatriados” para experiências supostamente relevantes na matriz. Melhores salários, melhores condições de vida. Claro, do ponto de vista individual não há nada de absurdo nesta perspectiva.

A questão, no entanto, não se desdobra pela vontade de migrar. O maior impacto está nos que ficam.

Resta aos brasileiros que ficam três caminhos, quais sejam (i) aspirarem ao padrão de vida europeu e americano, representantes dos centros decisórios que atualmente influenciam e determinam os caminhos econômicos do país, (ii) entenderem-se como não pertencentes ao conjunto de valores da metrópole, dado que para que alguns vençam outros devem necessariamente falhar, passando a absorver os discursos dos outros excluídos do mundo e (iii) entenderem-se como capazes de estruturar uma nova matriz, uma nova metrópole, sem os vícios que não admiram naquelas que os dominam atualmente, buscando para isso uma alternativa nacional.

Aos primeiros, cabe o discurso da meritocracia como pilar moral, o que em uma filial não faz o menor sentido. Dado que não existe uma competição de matrizes, a competição do primeiro grupo se dá dentro das filiais existentes no país. Não são premiados por sua competência em inovação, mas na sua aderência obediente às estratégias e valores dados por seus ídolos e líderes estrangeiros. Estes, que desejam vestir índios em jeans, se revoltam ao verificar que a prática de tais valores não garantem o sucesso matricial e, como não se entendem dentro desta estrutura furtadiana centro-periferia, acabam por justificar a inadequação de suas análises à uma suposta incompetência de seus compatriotas.

Aos segundos, cabe a emulação de discursos revolucionários estrangeiros. Na verdade, tais grupos eram desejosos do padrão central, mas reconhecem em si a sua inadequação ao modelo vigente. Não desejam mudar o modelo porque buscam libertarem-se como matriz, ao contrário. Buscam modificar o modelo para que  os incluam em melhor condições de competições pela centralidade que buscam fora. A tais grupos, falsos utópicos, resta o discurso apaixonado de uma revolução impossível, desconectada da história nacional e subserviente à história estrangeira. Queriam ser “a esquerda européia” e não “a alternativa brasileira”. Ao contrário de seus nêmesis, que buscavam transplantar a Europa para o Brasil, tais agremiações buscam implantar projetos exógenos de uma esquerda que não lhes representa e que, não raro, trai seus próprios valores.

Aos últimos resta o caminho nacional. Resta olhar os estrangeiros nos olhos. Comparar-se nos ombros. Ao terceiro grupo não aparecerá apoio externo de qualquer das matizes políticas. O olhar do terceiro grupo é pelo amanhã. Cabe a ele arquitetar no presente o design do futuro. Aos que desejam transformar o Brasil em metrópole o caminho não é fácil, tampouco de glórias. A estratégia não está escrita, as revoluções estrangeiras (embora de fundamental valor de aprendizado) não lhes veste. A estes grupos, resta olhar um índio e saber seu valor para a cultura nacional, valorizar-lhe a pele e resgatar-lhe a honra. Ao grupo dos nacionalistas cabe reconhecer aquilo que os dois primeiros grupos desprezam: o Brasil. Sempre que um movimento nacionalista caminha, encontra nos dois primeiros grupos opositores ferrenhos. Um caminho nacional não toleraria a competência infamante de macaquear a metrópole, tampouco a revolta seletiva da busca de implantação de remédios revolucionários estrangeiros e falidos.

O Brasil como empresa metropolitana permite verificarmos as estruturas introjetadas na nação para fazer que o boneco obedeça ao ventríloquo. No entanto, sabedores da competência nacional para a criação e superação, mostrar os cordões de dominação já é um passo importante para que a força do povo rompa com as amarras que imobilizam o Brasil.