Darcy Ribeiro: Universidade e Utopia

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Recém fugido do hospital alegando que ansiava por viver mais, indagado se era melhor como intelectual ou como político, o trecho abaixo foi a resposta de Darcy Ribeiro em uma entrevista concedida à Revista Veja em 1995.

Nunca gostei de ser político. No fundo, acho que sou político por razões éticas. Um poeta inglês pode ser só poeta. Mas num país com o intestino à mostra, como o Brasil, o intelectual tem obrigação de tomar posição. Essa é uma briga séria e eu estou nessa briga.

Em fevereiro de 2017, completamos 20 anos sem Darcy Ribeiro, e, decorrido todo esse tempo de sua morte, seus pensamentos encaixam-se perfeitamente no cenário sombrio da política brasileira atual. A inspiração para as reflexões aqui expostas advém em muito desse que, mais que antropólogo, escritor, político brasileiro e pensador incansável, foi um grande realizador e, por isso, em tempos difíceis, é também a tradução de esperança.

Cabe aqui esclarecer que parto da premissa de que o Brasil é um país subdesenvolvido, inserido na periferia do capitalismo. Esse fato, por si só, pode ser abordado por diversos aspectos, mas aqui destaco o papel da Universidade, que é (ou pelo menos deveria ser) instrumento essencial para a superação dos obstáculos estruturais que caracterizam e perpetuam o atraso de nossa Nação.

As universidades, explicadas por Darcy, são sub-estruturas encravadas em sistemas sociais globais, e, assim, não possuem condições de transformar a sociedade total, tendendo mais a refletir as mudanças verificadas do que inspirar-lhes alterações. Contudo, o próprio fato de ser parte do sistema estrutural global capacita a universidade a prever modificações concretas dentro do contexto social. Aqui está o ponto central desse texto: qual o lugar da universidade na luta contra o subdesenvolvimento?

Sabemos que as transformações sociais não são imparciais; elas podem caminhar no sentido da manutenção do sistema vigente ou determinar características renovadoras.

É certo que à primeira vista pode causar estranhamento se pensar em universidades desenvolvidas criadas no seio de nações subdesenvolvidas, pensamento este que logo se dissolve ao entendermos que universidade e sociedade deverão mudar juntas. Isso significa que é impossível se projetar qualquer mudança na universidade que não seja em função da sociedade, buscando reformá-la para que atue como agente de transformação intencional da realidade.

Em 1985, referindo-se à Universidade de Brasília, universidade que Darcy idealizou, criou e foi o primeiro reitor, afirma ele que “Existe [a UnB], para entender o Brasil com toda profundidade, e a primeira tarefa que se impõe no exercício dessa missão é ter coragem de lavar os olhos para ver nossa realidade, é perscrutá-la, é examiná-la, é analisá-la. O Brasil, entendido como seu povo e seu destino, é nosso tema e nosso problema”.[1]

Ora, em um país como o Brasil, qual deveria ser a razão de ser das universidades senão essa? Na luta pelo desenvolvimento autônomo do país, Darcy aponta que a mais alta responsabilidade da Universidade é o exercício das funções relativas à conscientização e crítica da sociedade, além de sua importância como órgão de criatividade cultural e científica. Assim, trata-se de uma instituição social cuja tarefa consiste em influenciar e modificar seu entorno, com a percepção de que o saber científico não atua de forma neutra.

A universidade é permeada por ideologias e interesses, logo, politizada. A despolitização da universidade é notadamente sua submissão aos interesses e à lógica dominante de distribuição de poder numa sociedade que não rompe com sua condição periférica. A transformação da sociedade pressupõe a política.

Nesse aspecto, muito nos interessam as seguintes indagações: quais universidades discutem as causas do atraso em suas disciplinas, como questão fundamental? Quais universidades tomam esse tema como sua causa? Todo o saber nelas acumulado é fiel ao povo que a subsidia para formar e manter as cabeças mais brilhantes?

A verdade é que até hoje, contrariando todas as respostas desejáveis aos questionamentos acima colocados, a universidade tem assumido o papel de dependência, seja pela manutenção do status quo, seja pela via da modernização reflexa, que aspira tão somente a reformar a universidade de modo a torná-la mais eficiente ao exercício de suas funções conservadoras dentro de sociedades dependentes. Esse é o papel que interessa às classes dominantes, é o papel que serve à conivência com a perversidade da sociedade com seu povo.

Diante disso, é manifesta a atualidade dos ensinamentos de Darcy, que em muito pode contribuir para a construção de um pensamento sobre a universidade que busque a realização de um projeto de renovação institucional com vistas à emancipação incondicional.

Temos que assumir a responsabilidade por nosso próprio destino e, nesse sentido, a universidade se apresenta como instrumento de construção de um projeto de nação emancipada. Do contrário, continuaremos presos às decisões externas ou das elites dirigentes que reforçam os pressupostos da “neocolonização”, impossibilitam a percepção de nossa realidade e inviabilizam propostas que realmente se voltem às necessidades do povo brasileiro.

Das inúmeras e valiosas lições que podemos tirar de Darcy Ribeiro, ressalto aqui a que considero essencial no pensamento de uma universidade que sirva ao projeto nacional de um país e não a interesses alheios. O modelo de Universidade que precisamos, antes de ser “um fato no mundo das coisas”, deve ser “um projeto, uma utopia, no mundo das ideias”. A tarefa que se impõe é a de transformar a utopia em um modelo teórico suficientemente claro e atraente para atuar como força de superação da estrutura vigente. Quer dizer que a utopia deve ser um plano orientador de passos concretos no caminho a ser percorrido entre a Universidade atual e a Universidade necessária.

Para tanto, internalizemos que “Temos todas as possibilidades de fazer com que o Brasil dê certo. A condição é proibir o passado de se imprimir no futuro. É interromper a dominação hegemônica e pervertida de nossa classe dominante infecunda”.[2]

Referências

Referências
1 RIBEIRO, Darcy. Universidade para quê? Brasília: Universidade de Brasília, 1986, p.14
2 RIBEIRO, Darcy. Universidade para quê? Brasília: Universidade de Brasília, 1986, p.27