Autoritarismo e falso consenso: o verdadeiro atoleiro brasileiro

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Desde que Fernando Henrique Cardoso, já eleito presidente da República anunciou a morte do modelo de Estado getulista na tribuna do Senado Federal, os debates em torno de um projeto de desenvolvimento foram bloqueados por uma onda de políticas privatistas que em tese prometiam romper com nosso passado autoritário promovendo a modernização social. Hoje, passados mais de 23 anos, o país encontra-se chafurdado na corrupção de suas instituições, em franca recessão econômica, vítima de um golpe velho e branco de Estado que culminou no Governo Michel Temer: uma claque fraudulenta capaz de atacar os direitos sociais, fazendo-nos retroceder décadas em poucos meses.

Mesmo a experiência de centro-esquerda consubstanciada na vitória de Lula em 2002 parece ter fracassado. O equilibrismo lulista de avanços sociais dosados com ajustes fiscais ortodoxos desaguou na malfadada Nova Matriz Econômica (NME) de Dilma Rousseff e nem mesmo assim o país parece ter saído do atoleiro. Hoje, os líderes do governo petista estão presos ou respondem a processos por práticas corruptas, a esquerda parece perdida numa violenta crise epistemológica e o país permanece enredado num jogo de poder oligárquico.

Como podemos ver, a história política do país caminha na direção contrária à democracia. Além de estar alicerçada num amplo histórico de pilhagens, a ordem social brasileira possui em seu próprio DNA o autoritarismo político, militar e econômico que até hoje repercutem na vida pública. Autoritarismo político manifesto na longa trajetória de golpes; autoritarismo militar expresso nas estruturas ultrapassadas tanto das forças armadas quanto das polícias militares que remontam à ordem dual da Guerra Fria; e autoritarismo econômico expresso nos milhares de planos empurrados goela abaixo sem qualquer participação popular na tomada de decisões estratégicas.

Historicamente, todos os presidentes que tentaram realizar mudanças significativas para romper com essa longa tragédia caíram em desgraça. Vítimas de golpes, tentativas de assassinato, suicídios ou outras conspirações. Foi assim com Vargas e João Goulart, por exemplo. A mera intenção do governo Jango de realizar reformas estruturais de base acendeu a fúria da elite brasileira, o que culminou no golpe civil-militar de 1964 e na instalação de uma ditadura, que conseguiu a proeza de reunir as três principais frentes do autoritarismo brasileiro: o militarismo, o estado de exceção e o economicismo.

Perdidos numa narrativa que nem existe mais, os setores conservadores do país não conseguem responder aos desafios contemporâneos exatamente porque não possuem resposta satisfatória para desfazer a violentíssima concentração de renda e poder, de modo que já não há conciliação entre a imensa fatia dos empobrecidos e a pequeníssima ilha dos abastados. Atualmente num crescente demográfico, acompanhado da ascensão da maior população economicamente ativa de sua história, o país patina nos números e não consegue “deslanchar” para um novo patamar de desenvolvimento social. Mesmo experimentando a expansão do PIB em determinados períodos, ainda esbarra em imensas dificuldades, aparentemente insolúveis.

Fugindo um pouco da armadilha economicista, mais do que caminhões atolados em nossas vergonhosas estradas, aumentando nossos custos de produção e escoamento, mais do que rodovias inacabadas e gigantescas obras que nunca saem do papel, o país necessita olhar para a estrada social que está pavimentando (ou não). A ordem social herdada pelo Brasil do século XXI é iníqua do ponto de vista socioeconômico sobretudo porque não avançamos por um caminho de radicalização da democracia, e enquanto não formos capazes de romper com o autoritarismo em suas três frentes, não conseguiremos avançar.

O crescimento das desigualdades econômicas, fator preponderante para o aumento das tensões sociais é um fenômeno global, mas encontra no Brasil um eco muito mais forte[1]. Segundo dados preliminares, a concentração de riquezas no mundo tende a fazer com que as nações retornem aos vergonhosos patamares do século XIX, e isto em pleno século XXI. Em 2010, o banco Credit Suisse publicou seu Global Wealth Report acusando que os 50% mais pobres da população mundial não detinham nem 2% dos ativos globais estimados. Já em 2015, apenas cinco anos depois, o mesmo relatório apontava que esses mesmos 50% possuíam menos de 1% dos ativos globais estimados, ou seja, os níveis de concentração de riquezas remontam ao período anterior à Primeira Guerra Mundial. Mesmo com sua economia entre as 10 maiores do planeta, cerca de 13% da população brasileira concentra 87,40% de toda a renda nacional. Apenas 5 mil famílias concentram 40% do fluxo de renda e 42% de todo o patrimônio brasileiro.

Isto deve-se a vários fatores numa cadeia complexa de causas, entretanto, diga-se de passagem, a nosso ver, o maior de todos os gargalos é a superação dessa densa herança autoritária, que sempre privilegia uma minoria em detrimento da imensa maioria. Esse fator, por si só, impossibilita qualquer tipo de consenso, de modo que o que hoje alguns estudiosos chamam de consenso, na verdade é apenas mais uma face do autoritarismo histórico e excludente.

Toda a base da “Nova República” brasileira inaugurada na ilusória “redemocratização” está corrompida. Num necessário excurso histórico, é possível visualizar que ainda sob o governo Figueiredo foi iniciada a chamada “abertura democrática”, lenta, gradual e controlada pelos militares. A tal abertura lenta e gradativa foi tutelada de perto pela elite, de tal modo, que o processo mesmo de reconquista do voto não foi alcançado por vias populares. O grande movimento das “Diretas Já”, embora tenha causado grande frenesi, terminou em derrota de sua emenda constitucional proposta no Congresso.

Tancredo Neves saiu-se vencedor das eleições indiretas inaugurando a chamada redemocratização, mas isso só foi possível, diga-se de passagem, pela atuação da “Aliança Democrática”, a articulação política que reunia dissidentes do regime autoritário e partidários da oposição. Tancredo, no entanto, como sabemos faleceu poucos dias antes de sua posse, assumindo em seu lugar José Sarney, ligado ao Regime Militar e vice indicado por essa mesma articulação.

A Aliança Democrática foi resultado da fusão entre os chamados “moderados” do PMDB que lideravam o movimento Diretas Já! e os liberais dissidentes do regime militar que compuseram a antiga Frente Liberal, ou seja, na verdade a face civil que sustentou o golpe. Em 07 de agosto de 1984 os dois grupos assinaram o documento “Compromisso com a Nação” (uma espécie de Carta ao Povo Brasileiro da época) propugnando a “transição democrática”. Esse pacto defendeu “a conciliação entre a sociedade e o Estado, entre o povo e o governo”, sem ressentimentos, baseada na liberdade, por meio da reorganização institucional, da promulgação de uma nova Constituição Federal, e da erradicação da miséria.[2] (grifo nosso)

Em 1º de fevereiro de 1987 foi aberta em sessão solene no Congresso Nacional, a Assembleia Nacional Constituinte. Suas subcomissões inauguraram as atividades em 22 de abril de 1987, e em apenas três semanas foram realizadas mais de 200 reuniões e quase 900 representantes de vários setores da sociedade brasileira foram ouvidos. Paulo Bonavides ensina que este foi o primeiro processo Constituinte brasileiro que não se originou de uma ruptura institucional. Mas, como bom jurista, Bonavides sustenta que nem por isso a ruptura deixou de acontecer, operando-se na abstrata “alma da Nação” após longo eclipse das liberdades políticas.[3]

Com todo o respeito ao eminente jurista, essa interpretação é no mínimo fraca perante a evidente tutela militar da obscena abertura lenta e gradual. Não é possível falar em ruptura na “alma da nação”, quando a Constituinte bem demonstrou que os setores mais reacionários permaneciam atuando para que a nascente democracia fosse limitada. Desse diagnóstico surge uma questão histórica mal resolvida: a elite econômica brasileira tem medo da democracia. A minoria que domina a maior parte da riqueza nacional teme que a democracia termine por democratizar também o acesso a essa riqueza. Sempre que a democracia ameaça essa condição econômica, a elite boicota e perverte o processo.

É o que o sociólogo Florestan Fernandes enxergou. Para Florestan, a Constituinte não passou de um elo tolerado de uma cadeia que se iniciou com o golpe de 1964, alcançando maturidade com as políticas de transição dos governos de Geisel e Figueiredo. Essa ‘maturidade’ deu luz à candidatura de Tancredo Neves, ao governo José Sarney e à própria Constituinte. Ou seja, a Constituinte era uma “herdeira e continuadora da República institucional”[4]. A transição também foi amplamente criticada pelo cientista político Francisco Weffort, que a conceituou como uma tentativa das elites de evitar uma “ruptura do tecido social”. Weffort denunciou que a transição política iniciada em 1974 com a política de distensão do General Geisel foi forjada com a argamassa forte dos interesses conservadores[5].

O próprio contexto que antecedeu a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, ainda resguardava tensões originárias da ditadura. As condições (ou a ausência delas) para o embate político institucional limitavam a ação das oposições, ainda assim, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras entidades, foram decisivas nas negociações com o regime no sentido de garantir os direitos civis e políticos[6].

O regime autoritário articulava-se à época muito mais como um “sistema de transformações controladas”, isto é, de instrumentos de controle materiais e ideológicos, limitadores, do que como um “movimento de abertura”. Na análise de Raymundo Faoro[7] essa atividade limitadora do suposto processo de abertura se apoiou em dois pressupostos: (i) primeiro, na validade histórica da chamada “Revolução”, isto é, do golpe de Estado realizado em março de 1964, e (ii) na tomada do desenvolvimento para a ideia de “destino manifesto”, ou seja, ideia mística de que tal destino seria a vontade divina.[8]

Em outras palavras havia uma crença de que o futuro do Brasil seria brilhante, ainda que para isso, fosse necessário o uso da força. Esta crença impingiu ao processo de abertura uma grande dose de coerção tornando a ideologia da segurança nacional a responsável pela tutela das negociações pela democracia. O único objetivo dessa tutela era a realização de um consenso controlado. Estas foram as condições de possibilidade do nascimento do conceito de conciliação[9], uma espécie de democratização autoritária que se desdobrou mais tarde no instrumento de governabilidade chamado “Presidencialismo de Coalizão”.

Como bem destacou Carlos Nelson Coutinho, as transformações políticas realizadas no Brasil foram em sua maioria efetuadas através de conciliações, que se realizam sempre “entre frações das classes dominantes”, através de “medidas aplicadas de cima para baixo”; que “tiveram como causa e efeito principais, a permanente tentativa de marginalizar as massas populares não só da vida social em geral, mas sobretudo do processo de formação das grandes decisões nacionais”[10]. Já no final da década de 70, o autor alertava para a permanência dos “elementos ditatoriais” na transição brasileira[11]. Deste mesmo modo, anos mais tarde o pacto que se anunciou com o nome de “conciliação”, “transição” e “consenso”, repetiu essa fórmula, reorganizando institucionalmente o país por meio de um acordo entre os grupos dominantes e as elites, a fim de evitar os “radicalismos”.

Existiu, claro, um vínculo entre a política de distensão, a política de abertura do regime militar e a chamada Nova República; esta última, nada fez senão manter o status quo de sua época. Mesmo o jurista Paulo Bonavides que levantou a hipótese de uma “ruptura” política abstrata em relação à ordem vigente para legitimar o ordenamento jurídico nascente, assumiu que a “Nova República” na verdade foi um paliativo, “uma espécie de República tampão no tempo, assentada sobre o compromisso partidário e oposicionista da Aliança Democrática[12].

A cereja do bolo, entretanto, ficou historicamente situada no discurso do então Ministro Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) à época da Constituinte. Na abertura da Constituinte, o ministro realizou uma breve apresentação histórica da ideia moderna de Constituição, destacando as lutas liberais pela contenção do absolutismo e pela garantia das liberdades individuais por meio da lei positivada, mas não deixou de ressaltar que no caso brasileiro, a legitimidade da nova Constituição se assentaria num pacto de transição, e não numa ruptura da antiga ordem. Para Alves, a via não foi a ruptura mas a conciliação, considerando inclusive os acontecimentos de 64 como “revolução” legítima e não como golpe.

Daí decorrem três ideias centrais, isto é, (i) a verdade de que o que legitima a Constituição de 1988 é uma transição sem ruptura por meio da conciliação, que como já vimos é uma conciliação das oligarquias (feita pelo alto), (ii) a ideia de que essa transição reafirma o caráter “revolucionário” do golpe militar de 1964, tornando-o supostamente “legal” e “legítimo”, e (iii) de que a nova constituição deveria permitir mudanças na estrutura social sem colocar em risco o “processo político” que de fundo, é essa mesma aliança oligárquica que sustenta o regime político brasileiro.

Essa noção de uma “transição sem ruptura constitucional e por via de conciliação” remete imediatamente ao acordo que sustentou o Governo Sarney cujas bases sustentam até hoje os governos no que toca à governabilidade e à interpretação da Constituição[13]. Nosso contemporâneo, o professor da Faculdade de Direito da USP José Eduardo Faria demonstra claramente que a Constituinte foi convocada para realizar uma tarefa dupla, ou seja, “criar condições jurídicas para a estabilidade política das instituições governamentais” através da formulação de uma ordem capaz de assegurar governabilidade e estabelecer os “parâmetros normativos para a promoção ordenada e controlada de mudanças socioeconômicas numa sociedade estigmatizada por suas contradições estruturais”[14]; fato esse comprovado pela conversão de uma Assembleia Constituinte exclusiva em um Congresso com poderes constituintes, o que foi realizado com a manifesta finalidade de atrelar a legalidade nascente à ordem vigente e às práticas de reprodução a ela inerentes”[15].

Se a tão aguardada ruptura não ocorreu por meio das Diretas, “aguardou-se, então, que a ruptura viesse através de uma Assembleia Nacional Constituinte autônoma, soberana e exclusiva, que se dissolvesse depois da invenção de uma Constituição (…). A ‘nova República’ frustrou esse sonho”[16], visto que o resultado desse processo foi um congresso com poderes constituintes controlados por uma maioria conservadora, especialmente ligada ao Governo Sarney: o chamado “centrão” (veja! algo sempre atual!)

Um dos pontos cruciais para compreender esse movimento político tutelado pelas elites é que o conservadorismo em si não seria um problema. Em muitos lugares do mundo, os conservadores possuem posições teóricas bem determinadas e não raras vezes concordam conjunturalmente com mudanças estruturais para que o país supere seus problemas históricos. No Brasil, porém, não funciona assim. O conservadorismo brasileiro procura manter, assegurar, um quadro violento de desigualdade econômica com grande concentração de riquezas, replicando ad eternum a lógica Casa Grande x Senzala.

Como se não bastasse, além dos conservadores, ainda existem os reacionários, que ao menor sinal de mudança, imediatamente “reagem” acionando a “marcha-a-ré” na sociedade, defendendo posições cada vez mais deletérias aos direitos fundamentais, e por vezes, invocando a violência de Estado contra o que consideram baderna ou balbúrdia.

Foi neste terreno que a Constituição Federal de 1988 nasceu, numa transição para a democracia realizada pelo alto, sob interferências do Poder Executivo, pensada para ser uma Constituição que não ameaçasse o acordo inicial entre liberais e militares, entre os supostos partidários da democracia e as oligarquias donas do poder. A Constituinte que redigiu o texto constitucional final, sofreu profundos golpes em seu percurso, com ingerências explícitas do Governo Sarney e mudanças brutas naquilo que havia sido construído por participação popular.

Se é fato que pioramos nosso atoleiro com o golpe de 64, também é fato que até hoje não saímos desse mesmo atoleiro. A chamada Constituição Cidadã é ironicamente fruto da recusa da participação cidadã. É fruto de manobras que burlaram os mecanismos de exercício da própria democracia. A intervenção do governo Sarney na Constituinte por meio dos golpes regimentais levados a cabo pelo chamado centrão produziram uma Constituição ambígua, que abraça ideias progressistas, mas também serve de base para ideias conservadoras, dando vazão a verdadeiros terremotos reacionários em momentos de crise política. Talvez porque tenha mantido uma estrutura de poder onde os partidos de centro (historicamente fisiologistas) tornam-se fieis da balança, sem os quais qualquer governo está (em tese) fadado ao fracasso.

O buraco é ainda mais embaixo e tem muita lama envolvida: a própria gênese dessa conciliação aponta para uma transição autoritária que forjou um modelo pensado para manter os donos do poder exatamente no lugar em que sempre estiveram. O ordenamento jurídico brasileiro foi intencionalmente formulado para que as mudanças sociais não atinjam o cerne do poder, isto é, não ameacem a continuidade. Por incrível que pareça, nossa Constituição mais avançada foi planejada para ser uma trava. Seu arranjo de poder não permite deliberadamente que nenhum partido governe sozinho. Esse mecanismo exige que o governo, independentemente de sua bandeira partidária se curve ao centrão que reúne os estratos mais conservadores (e corruptos) do Legislativo, por sua vez, eleitos por um sistema de representação distorcida.

Eis aí o real substrato do tal presidencialismo de coalizão que mantém o Congresso Nacional como grande balcão de negócios, ou como bem declarou Celso Amorim, um quase “sexo explícito”.

Se formos um pouco mais críticos entenderemos que não há propriamente democracia no Brasil. O que existe é um arremedo oligárquico com eleições regulares, distorcidas por um sistema político viciado e financeiramente influenciado. Nem mesmo a liberdade de expressão, aspecto fundamental das democracias modernas, é plenamente exercida no país, tendo em vista o forte oligopólio de apenas 11 famílias que dominam toda a cadeia de rádio/tv/revistas/jornais do Brasil.

Que consenso é esse, onde só se ouve vozes brancas, homens engravatados, moradores do sudeste? Que consenso é esse que exclui a população negra, as mulheres e as demais regiões do país, tão importantes quanto o eixo sul-sudeste? Que consenso é esse que não trabalha com um conceito mínimo de justiça nas relações econômicas? Que consenso é esse que impede qualquer possibilidade de alteração do futuro por meio de escolhas democráticas? Que consenso é esse que sustenta uma classe política e econômica privilegiada, incapaz de se abrir para a mudança?

Como fugir disso? Qual a linha de fuga e resistência para um sistema de travas tão complexo?

Esse é o nosso imenso desafio! Nosso atoleiro é maior do que supõe a vã filosofia da velha esquerda. Esse sistema simplesmente impede a concretização de qualquer programa político alternativo a longo prazo, e este é um gravíssimo problema que precisa ser desatado. É nesse ponto específico que discordo respeitosamente do meu querido amigo Luiz Roque Cardia. Se por um lado as alianças, acordos e compromissos fazem parte do processo político por outro a própria noção de coalizão encontra-se viciada no contexto do atual sistema político brasileiro. Cardia ressaltou em seu belo texto que o principal problema da era lulista não foram as alianças mas a ausência de um programa. A questão, entretanto, é que o programa mesmo se faz na teia de relações políticas que o ator-líder é capaz de mobilizar. Assim, Cardia realiza um bom diagnóstico mas comete um grave equívoco: não há projeto claro de desenvolvimento sem uma rede de sustentação a esse projeto, e a atual rede de sustentação está quase completamente fora do sistema de decisões.

Explico: quando pensamos num núcleo de prioridades inegociáveis precisamos ter em mente que esse núcleo suficientemente rebelde tocará exatamente em questões sensíveis para as poderosas elites brasileiras, que penso eu, golpistas como são, serão incapazes de ceder. A questão das alianças, portanto, volta ao jogo com toda força, porque um projeto de desenvolvimento não é um ente abstrato, transcendental que paira sobre os conflitos subjacentes à realidade social. Longe disso, um projeto é forjado no duríssimo embate das lutas sociais imanentes, ele não está lá num futuro ideado, mas aqui nesse atoleiro desanimador. Não vejo, num primeiro momento, uma correlação de forças dentro do sistema político decisório, disposta a sustentar um projeto de desenvolvimento, donde a questão da radicalização democrática aparece como saída impostergável.

O próprio Luiz assume em seu texto que os avanços negociados de Getúlio culminaram no golpismo antigetulista, da mesma maneira que os avanços de JK provocaram duas tentativas de golpe. Isto para não falarmos de João Goulart. Desconfio, portanto, que por mais claro, límpido e pedagógico que seja um projeto de desenvolvimento, a elite não embarcará nele porque é radicalmente contrária à democracia, vide por exemplo, o que essa mesma elite tem sido capaz de fazer com um conciliador como Lula (!) capitão de um programa de consensos. Tem razão nossos amigos anarquistas quando advertem: “nunca se deve subestimar o ressentimento dos ricos em relação à insolência dos pobres!”[17]

Que faremos então? Cairemos num fatalismo? De modo algum! Não há receitas prontas, mas as sementes da resistência tomam o atoleiro pelo avesso, tornando-o adubo da rebeldia. A saída, talvez, passe pelo que Roberto Mangabeira Unger vem dizendo há algum tempo: por rebeldia nacional e aposta numa revolução subjetiva levada a cabo pelos “batalhadores”, essa classe emergente, que Hugo Albuquerque designa de forma ainda mais interessante de “Classe Sem Nome” pouco conhecida mas com a vulcanidade de uma classe-selvagem, que o PT quis pateticamente aprisionar no conceito tosco de nova classe-média.

Precisamos avaliar com muito carinho a possibilidade concreta de acelerar o uso dos instrumentos de democracia direta, talvez numa conexão arriscada com essa classe que surge, tomando potentes brechas constituintes e alterando por fim o sistema decisório para a construção de um desenvolvimento alternativo capaz de implodir de vez esse sistema fechado de consensos autoritários. Nesse ínterim, não descarto, por exemplo, o chamamento a uma nova Constituinte no momento adequado.

Viva o dissenso! Lancemos lama sobre todos aqueles que querem dirigir nosso futuro do alto de seus gabinetes. Que corramos os riscos de sermos chamados de plebiscitários, de chavistas, bolivarianos ou seja lá o que for. Pouco importa. Será apenas mais um dos xingamentos para nossa longa lista de insultos: gente feia, pobre, preta, índia, gente maloqueira… Sejamos tudo isso afirmativamente, porque tudo o que precisamos nesse momento é de coragem para sair do atoleiro que nos meteram sem nos consultar.

Afinal, não há consenso.

Nunca houve.

 

 

Referências

Referências
1 Desde 2013, Thomas Piketty já apontava para o crescimento mundial da concentração de riquezas, observado desde 1970, em sua obra: “O Capital no Século XXI”.
2 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 799-804. A redação do documento contou com a participação de Tancredo Neves, José Sarney, Ulysses Guimarães, Jorge Bornhausen, Aureliano Chaves, Marco Maciel, e Freitas Nobre. Mesmo com a consternação nacional produzida pela morte de Tancredo Neves, a Aliança Democrática foi mantida e sustentou a posse de José Sarney.
3 BONAVIDES, Paulo e PAES de Andrade, Op. Cit. pg. 451.
4 FERNANDES, Florestan. A Constituição Inacabada: vias históricas e significado político. Ed. Estação Liberdade, 1989, pg. 69 e 72
5 WEFFORT, Francisco. Por que Democracia? Ed. Brasiliense, 1984, SP, pg. 14-15.
6 Exemplo disso foi a luta pela reabilitação do Habeas Corpus como instituto constitucional.
7 Raymundo Faoro, reconhecido jurista e historiador, presidiu o Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre 1977 e 1979 com destacada atuação em favor da superação do autoritarismo, período em que lançou a proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, negociou a restauração do Habeas Corpus e a chamada lei da Anistia.
8 FAORO, Raymundo. A democracia traída: entrevistas Raymundo Faoro; organização e notas Maurício Dias; prefácio Mino Carta. Sp, Ed. Globo, 2008, pg. 24
9 Ibdem, pg. 25. Essa á a análise de Raymundo Faoro, que descreve a transição para a democracia como “conciliação oligárquica”, expondo que neste processo houve absorção de certos mecanismos que serviram ao regime autoritário, chegando a afirmar em entrevista compilada nessa mesma obra, que “a transição foi uma manobra conservadora, conciliatória, para que o país não se renovasse” (pg. 44)
10 COUTINHO, Carlos Nelson. A Democracia como Valor Universal.In: SILEIRA, Ênio. Encontros com a Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1979, p. 41.
11 Ibdem. Pg. 44. Coutinho identifica correntes e personalidades que revelam uma visão estreita e puramente instrumental de democracia no mesmo sentido do que Weffort também aponta. O autor ainda utiliza o termo “via prussiana” para expor a idéia de “conciliação pelo alto”, através da qual as elites brasileiras realizam as transformações necessárias, excluindo as grandes parcelas da população do núcleo de decisões políticas.
12 BONAVIDES, Paulo e PAES de Andrade, História Constitucional do Brasil. Ed. Paz e Terra, 1991, RJ, pg. 452.
13 Prova disso foi a rejeição do STF ao pedido de revisão da Lei de Anistia, que dentre outros erros, terminou por anistiar os torturadores, numa relação absolutamente desequilibrada entre Estado e resistentes.
14 FARIA, José Eduardo. O Brasil pós-constituinte. Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1989, pg. 15
15 Ibdem, p.16
16 FERNANDES, Florestan. O Desafio Educacional, Ed. Cortez, São Paulo, 1989, p.40
17 Refiro-me ao COMITÊ INVISÍVEL e ao seu belíssimo livro “Aos nossos amigos: crise e insurreição”, publicado pela editora n-1 em 2016.

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