Esquerda precisa fazer debate sobre segurança

Guerra às drogas no Rio de Janeiro
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Estava eu ontem, dia 14, retornando pra casa quando recebi aturdido a terrível notícia de que a Marielle Franco havia sido assassinada, ela que era do PSOL do Rio de Janeiro, a quinta vereadora mais votada na cidade no pleito de 2016. A socióloga foi brutalmente morta a tiros juntamente com o seu motorista, Anderson Pedro Gomes, depois de voltar de um evento no bairro da Lapa. Conforme as notícias foram chegando a hipótese de execução ganhou força e é até o momento é a principal linha de investigação.

Marielle, de 38 anos, tinha uma atuação política voltada à defesa dos Direitos Humanos, à luta contra o racismo e a uma agenda de igualdade de gênero e diversidade sexual. Nas últimas semanas havia sido encarregada de ser relatora da Comissão da Câmara de vereadores que acompanhará a Intervenção Federal no Rio de Janeiro. Também nos últimos dias posicionou-se contra o 41º Batalhão da Polícia Militar do Rio que, segundo o Instituto de Segurança Pública do Estado, é o Batalhão que mais mata. Teriam sido 450 mortes apenas nos últimos cinco anos. Marielle acusou policiais do referido Batalhão de serem responsáveis por executar dois jovens em Acari e de aterrorizar a população local.

O crime que gerou mobilização imediata nas redes sociais e agora também nas ruas, com várias manifestações agendadas em pelo menos 10 das capitais do País, coloca novamente a segurança pública em holofote. Infelizmente o mundo da política não espera e ainda que tenha sido uma tragédia tão recente, os temas que ela evoca devem ser pensados desde já sob o risco não apenas de se perder a oportunidade de fazer um debate maduro sobre, mas como também de se dar palco para os discursos demagógicos e mesmo reacionários encampados por parte da direita — e que não nos enganemos, estão à espreita.

Nesse ponto, aliás, não sei o quão adequado é a abordagem de algumas das convocações para os atos que se farão e como isso repercurtirá. Em alguns deles fala-se em “marcha contra o genocídio da população negra”. Até que ponto foi sobre isso que se tratou a execução de Marielle? Em 2011 a juiza Patrícia Acioli foi morta por alguns dos policiais que investigava. Acioli era branca, de classe média e, pelo que consta, não tinha nenhuma ligação com movimento social. Seu trabalho era basicamente voltado à investigação do crime organizado e seu envolvimento com setores da polícia. Mas, como não é difícil perceber, esses grupos não toleram quem afetam seus negócios. E isso claramente está acima de posições ideológicas e identitárias.

Outro ponto da abordagem identitarista referida e que pode ser ineficaz na arenga política no intento de propor um debate racional sobre a violência, tema que hoje é totalmente interditado por discursos simplistas mas com bastante adesão popular, é que passa a falsa impressão de que o problema da violência é focalizado nas minorias sociais — mulheres, negros, LGBTs etc. Num país com uma taxa alarmante de 60 mil homicídios por ano é uma tática política reducionista no mínimo contestável — sem entrar no mérito teórico, que também é bastante controverso.

Quase toda a classe trabalhadora e setores médios no Brasil, seja qual for a cor, a etnia, a orientação sexual, gênero ou a identidade deste já foi afetado direta ou indiretamente pela violência. Não é o momento de chamar portanto toda a população, propor um debate franco e aberto e expor as feridas que a todos tocam? Até quando continuaremos nessa guerra às drogas fadada ao fracasso? Não é uma pergunta a se fazer dado o fato incontornável que a proibição das drogas não surte qualquer efeito negativo sobre o tráfico? A política pública pra segurança é realmente eficaz? A polícia militarizada tem representado uma solução satisfatória? Em que ponto a abordagem apenas punitivista e pouco voltada aos problemas estruturais trazem resultados? É preciso trazer esses elementos à baila sem medo de dialogar com o contraditório.

O grande problema aqui é que se tal debate que é absolutamente urgente não for colocado em perspectiva e devidamente direcionado, pode reforçar o rumo demagógico e ineficaz que há muito tempo é hegemonizado na boca dos infelizes de sempre. Como sabemos a política não tolera vácuo. A intervenção federal que se realiza no Rio de Janeiro, e que pra muitos é inconstitucional e simboliza um estado de exceção, encontrou legitimidade para parte da população em imagens de violência que se espalharam na televisão e redes sociais durante o Carnaval. O assassinato brutal de uma pessoa pública pode muito bem ser utilizado por essas figuras inescrupulosas que capturaram o poder pra reafirmar aquilo que a Marielle Franco tanto combatia.

Se não agirmos, alguém o fará. É a única certeza, pois. E fica a indagação de Marielle, feita terça-feira, tão precisa quanto angustiante: “quantos mais precisarão morrer pra que essa guerra acabe?” Quantos mais?