Fantasmas na Europa

Bismarck e Napoleão III na manhã seguinte à batalha de Sedan, setembro de 1870.
Botão Siga o Disparada no Google News

Dois espectros rondam a Europa – o espectro de Richelieu e o espectro de Bismarck. O que isso implica, numa perspectiva de longa duração, é incompreensível sem retornar às relações entre França e Alemanha desde o primeiro de três grandes choques vivenciados em território alemão e que influenciaram a construção da ordem europeia na história moderna e contemporânea.

A GUERRA

O primeiro deles foi a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), durante a qual o conflito entre católicos e protestantes desafiou a hegemonia da multinacional família Habsburgo. O que desequilibrou o jogo em desfavor das pretensões imperiais dos Habsburgos foi decisivamente a ação anti-hegemônica francesa, praticada pelo Cardeal Richelieu, ministro de Luís XIII.

A França católica de Richelieu abandonou o cálculo religioso e apoiou os protestantes alemães contra a também católica dinastia Habsburgo, apesar de se opor severamente aos protestantes franceses. Estava em jogo, para Richelieu, a sobrevivência não da religião, mas do Estado francês. O que veio a ser conhecido como raison d’état (razão de Estado) dava a conotação do real constrangimento às ambições francesas: a Europa central unida, pela dinastia Habsburgo ou qualquer outra, seria uma força imbatível.  

Ao criar o mais sofisticado aparelho diplomático da Europa, Richelieu fortaleceu príncipes protestantes do fragmentado território alemão e realizou o princípio central da política externa francesa, a velha regra do “dividir para reinar”. Quando a guerra terminou, os acordos da Paz de Vestfália enterraram grande parte do medievalismo e abriram as portas para os tempos modernos, introduzindo o próprio conceito de soberania do Estado e todo o direito internacional que daí decorreu.

O segundo choque marcante que o território alemão vivenciou e que revolucionou a ordem europeia foi o das guerras que conduziram à unificação da Alemanha no século XIX sob o controle da Prússia, antagônica às pretensões austríacas.  O Império Alemão foi proclamado em 1871, após uma guerra prussiana contra a Dinamarca (1864), contra a Áustria (1866), e contra a França (1870-71). A união do estilhaçado território alemão arrasou o poderio francês e dissolveu, então, a velha arquitetura geopolítica de Richelieu, substituindo-a pela de Bismarck. De acordo com Henry Kissinger, a política de Richelieu serviu como essência da ordem europeia. Quando aquela colapsou, se foi também o papel dominante da França.

O terceiro abalo da ordem internacional europeia foi o século XX alemão. Duas grandes guerras cujo epicentro foi a Alemanha alvoroçaram o planeta inteiro e a França se viu, inclusive, ocupada pelos nazistas. Ao final, uma Alemanha dividida entre os dois grandes poderes vitoriosos, os EUA e a URSS.

O SENTIDO DA INTEGRAÇÃO

No campo ocidental, a integração da República Federal da Alemanha (RFA) num sistema europeu de segurança tornou-se uma exigência para o sucesso da estratégia norte-americana durante a Guerra Fria. O objetivo, que pressupunha a recuperação econômica da Alemanha ocidental através do Plano Marshall,  era fazer com que a indústria alemã se revitalizasse e fortalecesse as economias aliadas, mas também possibilitar que o rearmamento alemão fizesse frente ao poderio militar soviético no campo oriental.

A construção de uma Europa unida, no entanto, não foi, e não tem sido, um processo simples e isento de conflitos. França e RFA, agindo conforme os interesses nacionais herdados de suas respectivas formações, disputaram desde então o sentido da Europa.

Desde 1948, impôs-se na RFA o ordoliberalismo alemão. Essa espécie de “liberalismo organizado”, com um Estado forte e que assegura severamente a “concorrência acima de tudo”, funcionou para integrar o país no universo das economias capitalistas, superar o passado autoritário e o histórico de inflação perversa que assolara o país na década de 1920. O ordoliberalismo, com sua política da concorrência, veio a se tornar a base da integração europeia, mas na RFA teve antes que se contentar com uma forma híbrida que acolheu uma série de particularidades do Estado de bem-estar Bismarckiano e do modelo alemão de capitalismo social e keynesiano da década de 1970.

A visão alemã de integração europeia, portanto, dividiu-se desde o início entre a federalista e a ordoliberal: uma apontando prioritariamente para a unificação política (a integração econômica seria progressiva), e a outra para a criação de uma economia de mercado europeia. O projeto francês, apoiado no gaullismo, era também o de construção política da Europa, que deveria evoluir, no futuro, para uma confederação.

Mas o que se deu realmente foi a vitória do ordoliberalismo alemão, antes em nível europeu, e depois em nível doméstico, arrebatando os entraves aos seus princípios concorrenciais.

O Tratado de Roma, de 1957, e que institui a Comunidade Econômica Europeia (CEE) é responsável pelo pontapé inicial da implantação do concorrencialismo europeu, apoiado pela Corte de de Justiça Europeia, que basicamente permitiu a constitucionalização da política da concorrência.

Escorada em quatro liberdades essenciais, o mercado europeu opera com base na livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais, visando instaurar uma “economia social de mercado”, que nada mais é que a fórmula do ordoliberalismo alemão de organizar o capitalismo.

Ainda, como elemento da constitucionalização da política econômica, está o monetarismo do Banco Central Europeu, fundado em 1998 e que garante a estabilidade de preços, o segundo pilar da economia social de mercado. A criação da União Europeia em 1992 pelo Tratado de Maastricht indicou a adoção de uma política econômica coordenada entre os Estados-membros para preservar a concorrência livre, algo já intencionado pelo Tratado de Roma em 1957.

O Banco Central Europeu teve suas funções reforçadas pelo Tratado de Lisboa de 2007, que deu à União Europeia a competência de regrar a concorrência no mercado europeu e proibir práticas, incluindo incentivos estatais, que possam desvirtuar a concorrência.

As poucas conquistas francesas objetivando a criação de uma unificação política, apoiadas pelos minoritários federalistas alemães, foram setoriais como a política agrícola ou a comunidade de energia atômica. O sentido da integração foi dado pelo ordoliberalismo alemão e suas quatro liberdades econômicas.

Não restando espaço para política monetária independente, o único recurso disponível aos Estados-membros para manipular o desempenho econômico de seus territórios é fazer uso da concorrência intra-sistêmica, reduzindo impostos e salários, uma forma de dumping social e fiscal [1].

O problema dessa estrutura de integração foi revelado pelo esgarçamento das disparidades europeias após a crise de 2008. Conforme afirma Michel Aglietta, é “um resultado bem estabelecido da geografia econômica que, em um vasto espaço econômico munido de uma só moeda, a integração conduz a uma polarização da indústria em lugares onde ela é inicialmente mais forte[2].

A não ser que haja uma política industrial em escala europeia, a distância entre os sistemas industriais nacionais dentro do bloco continuará aumentando, e a política generalizada de concorrência prosseguirá levando Estados ao limite da arrecadação fiscal. Tampouco há sinais do surgimento de um amplo programa de transferências fiscais.

Além disso, a Zona do Euro é responsável pela absorção de mais de 50% dos excedentes comerciais alemães. Para Aglietta, a saída da crise seria transformar o bloco numa grande Alemanha, o que é absolutamente inviável dado que não existe demanda mundial para tanto excedente, principalmente considerando o acirramento da concorrência com a ascensão chinesa.

Diante desse impasse e do quadro de generalizado endividamento público e privado pós-2008, é evidente que o cenário europeu permaneça turbulento como se apresenta e que tendências nacionalistas estejam se reforçando no continente.

A TRAGÉDIA FRANCESA

Com a saída do Reino Unido da União Europeia prestes a se concretizar, os olhos do mundo voltam-se mais uma vez para o tabuleiro franco-alemão. Vários fatores se complementam para acirrar as incertezas sobre o futuro do projeto europeu.

De um lado, a ascensão de candidatos e partidos nacionalistas, mais bem-sucedidos em alguns casos que em outros, esquenta a disputa sobre a legitimidade da União Europeia. No último final de semana, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD), conquistou uma vitória significativa chegar ao parlamento alemão pela primeira vez desde a 2ª Guerra Mundial.

De outro, o mais arrebatador movimento de refundação da Europa unida parte das mãos do presidente francês Emmanuel Macron, e difere largamente dos valores originários do ordoliberalismo alemão.

Em discurso de ontem, 26 de setembro, na Sorbonne, estrategicamente proferido no hiato entre as eleições alemãs e a ainda aguardada composição de forças que formarão o governo naquele país, Macron propôs uma “profunda transformação” da Europa. Seu discurso carregado de conteúdos de política comunitária propõe a criação de: i) um orçamento comum para a zona do euro e o cargo de ministro das Finanças; ii) um orçamento de defesa e uma doutrina militar comum; iii) uma academia de espionagem europeia; iv) uma taxa sobre transações financeiras para financiar projetos de desenvolvimento; v) a criação de uma agência de inovação europeia e; vi) a harmonização dos impostos sobre empresas e do salário mínimo na Europa, entre outras coisas [3].

Se isso acontecer, é possível que a reforma de Macron afete as bases da integração ordoliberal da Europa e sua enraizada política de concorrência emanada da Alemanha. Mas o que Macron busca, seguindo os interesses nacionais do Estado francês, é criar uma saída para a crise europeia que permita à França equilibrar sua posição em relação à Alemanha, não necessariamente trocar postulados neoliberais por outros keynesianos. Porém, trata-se de uma aposta na própria sobrevivência do Estado francês, que notadamente passou a se confundir com a segurança e o desenvolvimento do bloco europeu. Resta saber como se desenvolverá a posição alemã.

Se há sempre o risco de sucumbir ao poder de uma Alemanha demográfica, militar e economicamente poderosa em caso de despedaçar-se a União Europeia, também existe a ameaça de prolongar indefinidamente a crise do bloco enquanto Estados Unidos e China concorrem pelos ativos mais estratégicos do mundo e do continente.

A França compreende o jogo da competição internacional. A recente decisão de nacionalizar temporariamente os estaleiros navais de Saint-Nazaire foi para “defender os interesses estratégicos da França”, nas palavras do ministro da Economia Bruno Le Marie. Um dos argumentos foi a ligação chinesa com o grupo italiano Fincantieri, que pretendia adquirir os estaleiros [4].

A união política da Europa, há décadas, é a resolução adormecida da França. Como numa tragédia shakespeariana, o destino da Europa atravessa o drama francês. O fantasma de Richelieu senta-se à mesa com o fantasma de Bismarck para uma partida aparentemente monótona de xadrez. O que se esconde embaixo da apatia dos oponentes, porém, é a cautela de quem conhece não apenas os interesses um do outro, mas também as ambições de seus espectadores.  De repente, é como se Richelieu escutasse um outro fantasma, o de Hamlet, ecoar em gélidos tons fantasmagóricos a urgência do problema:

“Não se esqueça; esta visita

é para aguçar tua resolução já quase cega.”

Referências

Referências
1 A maioria das informações deste item até aqui podem ser encontradas no livro “A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal”, de autoria de Pierre Dardot e Christian Laval, publicado pela editora Boitempo
2 AGLIETTA, Michel. Zona do Euro: qual o futuro?. São Paulo: Ideias e Letras, 2013, p. 28
3 https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/26/internacional/1506421196_879623.html
4 http://jornalggn.com.br/noticia/macron-nacionaliza-estaleiro-stx-em-saint-nazaire e https://www.dn.pt/mundo/interior/governo-frances-nacionaliza-temporariamente-estaleiros-navais-a–stx-france-8668255.html