111 anos do imortal Cartola

Na foto, Cartola protesta contra a proibição do governo de realização de um ensaio da Mangueira na Rua Visconde de Niterói, em preparação para o Carnaval de 1976
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Só deixando registrado que no dia 11 de outubro, sexta feira que passou, o imortal Cartola completaria 111 anos de idade. Ele nos deixou em 1980, quando contava 72 anos.

Angenor de Oliveira foi um dos maiores sambistas da história, e um dos grandes compositores da música pátria. Pra completar, foi também fundador da Estação Primeira de Mangueira, um dos baluartes da criatividade da cultura de nosso povo.

Poucos sabem, mas Cartola não nasceu na pobreza total. Ele é fruto da precariedade em que todas as famílias remediadas se encontravam, e ainda se encontram, nas hierarquias sociais do nosso país.

Seus ancestrais eram escravos do interior fluminense, mas a família atingiu certa dignidade, e ele cresceu no asfalto, primeiro no Catete e depois em Laranjeiras. Viviam numa vila operária da Companhia Aliança, uma das maiores fábricas de tecidos do Rio, e eram ajudados pelo sogro, que era cozinheiro no Palácio do Catete.

O pai do Cartola era um mestre do Cavaquinho, e ensinou o filho a dominar o instrumento e também o violão. A família frequentava os ranchos [carnavalescos] do bairro e o Bloco dos Arrepiados, que tinha uma bruxa como símbolo e já carregava as hoje míticas cores verde e rosa.

A família era do balacobaco, do carnaval, do reinado de Dionísio. A mãe fazia as fantasias que todos os irmãos [eram nove] e os progenitores usavam na ”ala de Satanás” do Bloco.

Com a morte do sogro e com o Bota-Abaixo que visava, dentre outras coisas, expulsar os pobres das regiões nobres da cidade — que deveria vender ares ”europeus” –, o pai de Cartola levou a família pra Mangueira, onde começava a se formar uma nova favela.

Cartola tinha 11 anos quando teve de se mudar para o ”Buraco Quente”, no lado esquerdo do Morro [o outro lado foi ocupado por soldados da Cavalaria, e era chamado de ”Petrópolis dos Pobres”].

Angenor vivia brigando com o pai. O garoto não se conformava à vida de trabalhador e ao fato de ter de dar o salário de tipógrafo para ajudar a casa. Vivia enfiado nos batuques do morro e nas rodas de pernadas comandadas por Mano Elói, um bandido e malandro da região que andava com gente da pesada, como Carlos Cachaça.

Nas rodas de pernada de sambistas da época, o pau comia, tudo em homenagem a Ogum. A roupa do malandro, impecável, indicava quem caia ou não na lama no círculo de porradaria.

Sim, o samba era coisa de nêgo que não queria nada com a sociedade do trabalho, era a bandidagem da época. O samba não tem história bonitinha, limpinha ou adocicada. Era fruto das classes ”perigosas”, dissidentes daquela civilização ocidental toda que as elites sociais e políticas queriam impor ao país.

E também envolvido com macumba até o talo. Toda essa bandidagem batuqueira se enturmava no terreiro da Tia Fé, que além de mãe de santo, era matriarca do Rancho Pérolas do Egito, que desfilava na antiga Praça Onze.

[Cartola tinha obrigações no terreiro, inclusive: ele era cambono, fazia despachos de rua para o pai de Santo Seu Júlio.]

Foi essa boa gente, que deixaria de cabelos em pé todos aqueles que se arrepiam com a origem ”marginal” de funkeiros, que Cartola fundou o lendário Bloco dos Arengueiros. O pessoal descia o morro no carnaval pra arrumar confusão, sair na porrada, roubar mulher de otário. O bonde era sinistro, e quem diz isso era o próprio Cartola: ”Era pra brigar, pra ser preso, pra apanhar, pra bater”. Claro, faziam música também.

Nesse meio tempo, Cartola foi expulso de casa. Quando tentou voltar, o pai já tinha levado a família embora da Mangueira. Repleto de doenças venéreas, o jovem foi salvo por uma preta casada, dona Deolinda, que deixou o marido de lado pra cuidar da nova paixão. Junto com a nova mulher, Cartola ganhou um filho pequeno e um sogro doente. Quem sustentava todo mundo era a pobre Deolinda, verdadeiro arrimo do novo arranjo familiar.

Bom, os blocos da Mangueira resolveram se unir e forjar uma Escola de Samba pra rivalizar com o pessoal do Estácio. Cartola escolheu as cores, deu o nome [Estação Primeira] e ainda compôs o primeiro samba, que apresentava a nova agremiação ao mundo. Estávamos em 1929, e logo a nova escola venceria o primeiro desfile de Carnaval da História.

Nascia uma lenda.

Na foto, Cartola protesta contra a proibição do governo de realização de um ensaio da Mangueira na Rua Visconde de Niterói, em preparação para o Carnaval de 1976
Na foto, Cartola protesta contra a proibição do governo de realização de um ensaio da Mangueira na Rua Visconde de Niterói, em preparação para o Carnaval de 1976

Por André Luiz Dos Reis