Anísio Teixeira, por Darcy Ribeiro

Anísio Teixeira, por Darcy Ribeiro.
Botão Siga o Disparada no Google News

Neste domingo, 12 de julho de 2020, completam-se 120 anos do nascimento de Anísio Teixeira. Educador signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova nos anos 1930, nos anos 1950 foi diretor do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) criado por Getúlio Vargas, criou a Campanha (atualmente Coordenação) Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e foi um dos idealizadores da Universidade de Brasília (UnB) tendo sido reitor da instituição até o golpe de 1964, quando foi cassado, perseguido e morto em 1971. Confira abaixo o depoimento de Darcy Ribeiro sobre Anísio Teixeira.

***

Excerto da autobiografia “Confissões” de Darcy Ribeiro publicada pela Companhia das Letras em 1997.

Anísio Spínola Teixeira representou para mim o que fora Rondon em outro tempo e dimensão. Baixinho, irrequieto, falador, mais cheio de dúvidas que de certezas, de perguntas que de respostas. Anísio me ensinou a duvidar e a pensar. Ele dizia de si mesmo que não tinha compromisso com suas ideias, o que me escandalizava, tão cheio eu estava de certezas. Custei a compreender que a lealdade que devemos é à busca da verdade, sem nos apegarmos a nenhuma delas. De mim dizia que eu tinha a coragem dos inscientes, referindo-se à minha ignorância e à ousadia de investir sobre os problemas educacionais, optando rapidamente entre alternativas.

Anísio exerceu uma influência muito grande sobre mim. Tanto que costumo dizer que tenho dois alter egos. Um, meu santo-herói, Rondon, com quem convivi e trabalhei por tanto tempo, aprendendo a ser gente. Outro, meu santo-sábio, Anísio. Por que santos os dois? Sei lá… Missionários, cruzados, assim, sei que eram. Cada qual de sua causa, que foram ambas causas minhas. Foram e são: a proteção aos índios e a educação do povo.

Fui para a educação pelas mãos de Anísio, de quem passei a ser, nos anos seguintes, discípulo e colaborador. O curioso da história de nossas relações de amizade e de respeito recíprocos é que, de início, Anísio e eu éramos francamente hostis um ao outro.

Para Anísio, eu, como intelectual, era um ente desprezível. Um homem metido com índios, enrolado com gentes bizarras, lá do mato. Ele não tinha simpatia nenhuma pelos índios; não sabia nada deles, nem queria saber. Para Anísio, Rondon era uma espécie de militar meio louco, um sacerdote de reiúna pregando para os índios; uma espécie de Anchieta de farda. Eu, para ele, era ajudante daquele Anchieta positivista. Um cientista preparado que se gastava à toa com os índios, aprendendo coisas que não tinham interesse nem relevância.

Para mim, Anísio era o oposto, um homem urbano, letrado, alienado. Eu o via como aquele intelectual magrinho, pequenininho, feinho, indignadozinho, que falava furioso de educação popular, que defendia a escola pública e gratuita com um ardor comovente. Mas eu não estava nessa. Gostava era do mato, estava era com meus índios, era com os camponeses, com o povão. Estava pensando era na revolução socialista. Anísio até me parecia udenista. Eu o achava meio udenóide por sua amizade com o Mangabeirão e por suas posições americanistas. Seu jeito não me agradava, ainda que reconhecesse nele, mesmo à distância, uma qualidade de veemência, uma quantidade de paixão que não encontrava em mais ninguém.

Através de Charles Wagley, que sempre nos quis aproximar – e que me levou a vê-lo umas duas vezes -, acabei conhecendo pessoalmente o Anísio. Isso quando ele criava, dentro do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, funcionando, nessa época, ainda na rua México. Wagley, que lá estava ajudando a fazer o primeiro plano de pesquisas do CBPE, convenceu Anísio de que devia ouvir uma conferência minha sobre índios.

Era uma conferência igual a muitas que eu fazia, naquela época, sobre os povos indígenas brasileiros e aspectos culturais da vida indígena, comparando e contrastando suas diversas fisionomias culturais. O certo é que comecei a conferência e, depois de falar uns dez minutos, vi que Anísio estava aceso, os olhinhos bem apertados, atento, comendo palavra por palavra do que eu dizia. Continuei a conferência, olhando para ele de vez em quando, de certa forma falando para ele. Em dado momento, Anísio começou a murmurar e eu custei a entender o que ele dizia. Vociferava: “São uns gregos! Uns gregos!”.

Eu mais falava sobre os índios – estava analisando a vida social dos Ramkokamekra, os chamados Canelas do Maranhão, que têm uma organização social muito complexa – e mais Anísio resmungava: “São uns gregos! Gregos!”.

Com essas interjeições, ele abriu uma espécie de diálogo louco comigo. Eu dizia coisas e coisas, e ele opunha interjeições: “São gregos! Gregos!”. Eu, inquieto, sem entender o que ele queria dizer com aquilo. Anísio aceso. Custei a compreender que, fechado em sua formação clássica, Anísio só foi capaz de ver e entender os índios enquanto configurações culturais, e meu interesse neles, por via de sua comparação com a mentalidade ateniense e a espartana.

Até então, Anísio, que não gostava dos índios, dizia que eu só podia ser um idiota porque, sendo inteligente como diziam, me dedicava a 0,02% da população brasileira, a indiada. O certo é que desde aquele primeiro encontro intelectual nos apaixonamos um pelo outro.

Fui trabalhar com Anísio. Ajudei a compor, a partir de uma central no Rio, que era o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, uma rede deles junto a universidades e grupos intelectuais em São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Curitiba e Porto Alegre. Nessa empreitada estavam Thales de Azevedo, Gilberto Freyre, Abgar Renault, Fernando Azevedo, muita gente mais de prestígio intelectual e de vago interesse pela educação. Exceto Fernando, que desde a década de 1920 era um combatente da educação pública. A ideia básica de Anísio era interessar a universidade brasileira e a intelectualidade em integrar a educação no seu campo de estudos, como fazia com a medicina e a engenharia.

Não nos largamos mais. Nos vendo diariamente, discutindo, trabalhando durante anos e anos. Sempre discordando, é certo, porque ambos somos espíritos polêmicos, mas sempre confluindo. Juntos enfrentamos a luta em defesa da escola pública, no curso dos debates no Congresso Nacional sobre a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional.

Foi na campanha por uma lei democrática para a educação e na luta para criar a Universidade de Brasília que comecei a me tornar visível no Brasil como educador. Aquela foi uma luta memorável, em que o melhor da intelectualidade lúcida e progressista se opunha à reação, comprometida com o privatismo, que condena o povo à ignorância. Nos dois campos os líderes mais atuantes eram o Anísio e seus colaboradores, eu inclusive, de um lado, e Carlos Lacerda e dom Hélder Câmara, no campo oposto.

O movimento alargou-se, porém, a todo o país, despertando para a ação política um grande número de intelectuais universitários, que, não encontrando uma via de acesso à militância, se estiolavam numa vida acadêmica esterilizante. Esse é o caso de Florestan Fernandes, admirável sociólogo, que só na luta pela escola pública e gratuita encontrou caminho para voltar ao combate político.

O que se debatia, em essência, era, por um lado, o caráter da educação popular que se devia dar e, por outro lado, como destinar ao ensino popular os escassos recursos públicos disponíveis para a educação. Não nos opusemos jamais à liberdade de ensino no sentido do direito, de quem quer que seja, a criar qualquer tipo de escola a suas expensas, para dar educação do colorido ideológico que deseja. Nos opúnhamos, isso sim, em nome dessa liberdade, a que o privatismo se apropriasse, como se apropriou, dos recursos públicos para subsidiar escolas confessionais ou meramente lucrativas.

Além dessa participação ativa na campanha em defesa da escola pública, cooperei com Anísio, também, no campo de minha especialidade. Principalmente na organização e direção, para o Ministério da Educação, do mais amplo programa de pesquisas sociológicas e antropológicas realizado no Brasil. Seu propósito era proporcionar aos condutores da política educacional brasileira toda a base informativa indispensável sobre a sociedade e a cultura brasileira, bem como sobre o processo de urbanização caótico e de industrialização intensiva a que ela vinha sendo submetida.

Para isso, assumi a direção científica do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Transferi para lá o programa pós-graduado de formação de pesquisadores que mantinha no Museu do Índio e organizei a equipe interna de pesquisadores e um corpo externo de colaboradores, do qual participaram alguns dos principais cientistas sociais brasileiros. Sobre essas bases, levei a cabo um triplo programa de pesquisas que tinha o Brasil como objeto de estudo.

O primeiro desses programas consistiu num conjunto de pesquisas de campo focalizando cidades em seu contexto urbano e rural de doze zonas
brasileiras representativas das principais áreas culturais do país. Preparei nos cursos que dava no CBPE e fiz residir, em cada uma daquelas cidades, um cientista social durante um ano. Cada um deles operando como observador participante, à base de um programa comum de pesquisa, que tornaria comparáveis os seus estudos.

O segundo programa, esse de base bibliográfica, consistiu numa série de estudos de síntese sobre temas básicos para a compreensão do Brasil moderno.

O terceiro programa abrangeu diversas pesquisas sociológicas, indispensáveis para o planejamento educacional, focalizando aspectos cruciais dos processos de urbanização e de industrialização.

Planejei e conduzi esses estudos tendo sempre a ideia de redigir um livro de síntese sobre o Brasil com base no material dele resultante. Entretanto, as tarefas a que fui chamado, depois, à frente da Universidade de Brasília, do Ministério da Educação e, mais tarde, como chefe da Casa Civil da Presidência da República não permitiram que eu fizesse minha parte. Só no exílio retomei essa temática, já com outra visão da ciência antropológica e da realidade brasileira. Não poderia ser a síntese daqueles estudos, mesmo porque, dos 32 programados, apenas catorze foram publicados, e também porque eu queria, então, coisa diferente — entender por que o Brasil teimava em não dar certo.

O convívio diário com Anísio e o fato circunstancial de que tinha me comprometido com Cyro dos Anjos a redigir o capítulo da educação das mensagens presidenciais de JK me deram oportunidade de me inteirar, ano após ano, das questões educacionais e, principalmente, do atraso vergonhoso em que andavam e da necessidade de uma virada séria. Na ocasião, se discutia no Congresso a primeira Lei de Diretrizes e Bases da educação, que me obrigou a me aprofundar nas implicações filosóficas e ideológicas do processo educacional.

Uma das discussões mais vivas, que nos contrapunha à direita, dizia respeito à formação do magistério primário. Eles queriam, em nome da liberdade de ensino, transferir o concurso de ingresso no curso normal do princípio dele para o fim. O que pretendiam com isso era deixar livre quem quisesse criar escolas normais. Aprovada a lei, isso se converteu num negócio que multiplicou geometricamente os cursos normais e, na mesma medida, degradou irreparavelmente a formação do professorado. Nós lutávamos para preservar e melhorar os institutos de educação que existiam em todos os estados e realizavam uma tarefa altamente meritória de formação de professores competentes. Eles queriam fazer das escolas normais, como fizeram, um negócio lucrativo. A Igreja foi nessa conversa, acreditando que assim se livrava de influência comunista sobre o alunado dos institutos de educação.

Carta a Hermes

Volto de sua casa aquecido pelos vinhos da Nenê, só arrefecido por sua frase final: estou a terminar a biografia de Anísio. E eu, que nunca escrevi a página, a simples página, que você pediu? Não sei se pelos vinhos, não sei se pelas lembranças, o certo é que me sinto culpado. Culpado diante de você, culpado diante de Anísio, que são as gentes a que mais quero bem.

Que dizer de mestre Anísio?

Nem mesmo sei se o que mais sei dele são fantasias ou fatos. Por exemplo: aquelas histórias de Roma e de Lourdes. Serão verdadeiras? Segundo a minha versão, Anísio, chegando a Roma pela primeira vez, foi com o papa negro dos jesuítas — ele seria, então, a grande vocação sacerdotal que se oferecia à Companhia — visitar o papa. Anísio o teria encontrado no castelo de Sant’Ângelo vestindo uma sotaina de verão, diante de uma grande janela. Aproxima-se, ajoelha, olha e para. O papa benze sua cabeça e espera. Talvez Anísio reze. Cansado de esperar, o papa pede que ele se levante para falar. Anísio, perplexo, não se move. Está paralisado porque quando levanta os olhos só vê a ceroula do papa, através da sotaina, à luz do janelão. Pregado nos joelhos, Anísio pensa agoniado: ai, meu Deus! É uma tentação demoníaca. O papa, pensando que Anísio está paralisado de unção. Anísio, contrito, sofre a visão chocante. Demoníaca.

Essa história tem antecedentes. Antes de chegar ao papa, Anísio teria ido a Lourdes, em peregrinação. Lá viu as multidões dos estropiados, dos aleijados esperando uma graça da Senhora. Quando chega diante da pia de água benta que toda aquela multidão miserável beijava, lambia, suplicando o milagre, Anísio se convulsiona num sufoco de nojo. Horrorizado com sua própria impiedade, para se martirizar, aperta a boca exatamente onde milhares de bocas porcas se lambuzavam. Teria esfregado a boca ali um tempo enorme, para se macerar, para se obrigar a aceitar a fé como ela é expressa pela gente simples.

Essa história também, talvez, não seja inteiramente verdadeira. Mas é de histórias assim a minha imagem de Anísio.

Esse meu Anísio mitificado como a figura mística do ex-futuro jesuíta que, obedecendo à proibição paterna de ingressar na Companhia, a desobedece fazendo, em segredo, sua preparação sacerdotal, sob assistência pessoal do padre Cabral, enquanto cursava direito. Tudo isso nos anos em que vivia no Rio, como um santo — entre boêmios como você —, numa pensão do Catete. O mesmo Anísio mítico, mas já não místico, que deixa Roma e o catolicismo para ir se encantar com Dewey na Universidade de Colúmbia, em Nova York, e se fazer a voz brasileira dos ideais de educação para a liberdade. Lavado já de qualquer ranço do reacionarismo católico que impregnara seu espírito.

É extremamente curioso que isso ocorresse justamente naqueles anos 20, em que surge no Brasil o primeiro grupo de intelectuais que se desgarram do anticlericalismo positivista ou liberal para se fazer católicos militantes. Quando Jackson, Alceu e outros marchavam para a Ação Católica, nosso Anísio — como você — vinha de volta. Quando a inteligência brasileira se descaminha para a direita que a levaria ao integralismo, Anísio, aferrado à democracia norte-americana, caminha para a esquerda. Você também.

Mas quem sabe dessas transas de sua geração é você. Meu papel é reconstituir a figura do Anísio de depois, através de episódios reais diretamente observados por mim. É rememorar o meu amigo Anísio, de uma vivência de anos. O nosso Anísio que você há de reencarnar ou pelo menos encadernar na biografia. Esse sertanejo agreste da nossa Chapada Diamantina; baiano da Bahia do bode, tão posto às fofuras dos baianos do Recôncavo.

Por: Darcy Ribeiro.