Arnaldo Ribeiro, pare de criticar o VAR

Arnaldo Ribeiro: pare de criticar o VAR
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Caro Arnaldo Ribeiro,

Venho por meio desta carta pública lhe propor uma reflexão e com ela trazer toda uma discussão que diz respeito ao esporte que mais amamos, o futebol, e o que tem acontecido com ele com o passar dos anos, mais especificamente nas últimas duas décadas. Mas não somente: também pretendo estabelecer uma conexão desses acontecimentos, dessas implicações, como o uso do VAR, que tu tanto criticas, com algo maior, mais diverso e complexo que vai além da seara esportiva que é sua especialidade e que você, permita-me chamá-lo assim, tão bem domina.

Antes de mais nada, Arnaldo, gostaria de lhe dizer que o acompanho desde os tempos da revista Placar. É possível que tenha lido coisas suas mesmo na época de Folha e Estadão, período no qual eu comecei a me interessar por jornal especialmente focado nos cadernos de esporte. Foi no ano de 1998, em virtude da Copa da França, que me apaixonei por essa modalidade incrível e que o teu colega Mauro Cezar corretamente chama de melhor invenção do homem. Mas foi através dos canais ESPN, que eu, que sou um dos milhares de fãs do esporte espalhados pelo Brasil, comecei a conhecê-lo melhor e o admirar por sua competência e visão futebolística.

E aqui um ponto importante tão difícil de ser expressado e compreendido por mais óbvio que seja em tempos de absoluta intolerância ao contraditório: eu não concordo com tudo que tu dizes. Aliás, é até provável que discorde mais do que concorde. Tenho absoluta discordância quando tu afirmas que Copas deviam ser disputadas a cada dez anos, que o clube é muito mais importante que a seleção (provavelmente aqui a maioria estará do seu lado, mas tenho meus argumentos) e mesmo sobre algumas análises táticas. Contudo, há em ti algo que me faz reverenciá-lo e que é fundamental, basilar, elementar em qualquer um que se disponha a versar sobre futebol: cultura futebolística.

E isso não se trata de negação dos avanços do futebol e suposto saudosismo (termo, aliás, muitas vezes desonesto na aplicação, utilizado sempre para desacreditar, à base do ad hominem, qualquer crítica aos apologistas fundamentalistas do futebol-novismo ou moderno e sua manifestação mais tola, o tatiquês). É apenas uma mera constatação: futebol é um jogo humano, jogado por homens que se inserem numa sociedade, comungam de determinados valores, expressam sentimentos e reações emocionais. Não é uma atividade de robôs como pretendem pavões tão tolos quanto arrogantes que não conhecem o pulsar de uma cancha porque aprenderam a olhá-la pelo sofá da sala.

A explosão da torcida no “recibimiento”, a pegada do time, aquela entrada no jogador mais habilidoso do adversário no limiar do cotejo, a imposição, o fator casa, o anímico da equipe, sua relação com as pressões externas diante de um título que há muito não vem ou de vencimentos não pagos, pesam imenso no desenvolvimento de uma partida, no resultado de um jogo, na conquista de um campeonato. E é por tudo isso, por esse emaranhado infindável de possibilidades, que o futebol é tão incrível e excepcional. E é por ter cultura de futebol, conhecer suas entranhas, que você tem a capacidade de decifrá-lo, Arnaldo.

E o viver o futebol é absolutamente antagônico à tentativa de castrá-lo, de moldá-lo a uma visão limitada de mundo. O futebol é plural, é diverso, pode ser jogado e sentido de diversas maneiras. O tatiquês que quer prever e explicar o imprevisível e inexplicável é, portanto, irmão siamês daqueles que querem por meio de traquitanas tecnológicas impor o que não pode ser imposto, capturar e domar o que não pode ser domado e capturado pelo olho humano. O VAR, o tal assistente de árbitro de vídeo, antes de representar um intento para transformar o jogo em algo mais justo e com menos erros, que é a argumentação mais conhecida e usada por seus apologistas, simboliza em verdade anseios e ventos de tempos estranhos, de quem não entendendo a cultura do futebol e bebendo nas visões hegemônicas, não tolera conviver com a angústia do imprevisível. O imprevisível, veja só, que é por essência e excelência a marca maior do futebol.

É por isso, caro Arnaldo, que discordo dos termos que você usa pra criticar o VAR. Ora, é óbvio que o aparato reduziria os erros de arbitragem, e os números, inquestionáveis e frios, o demonstram. Seria ululante também que ele não corrigiria tudo e que erros e utilização equivocada seriam naturais, corriqueiros, uma vez que o VAR é apenas uma ferramenta usada por humanos, que erram e vão continuar a errar e tão mais falharão quanto menos estiverem acostumados com o aparato. Por isso discordo das suas falas, da sua justificada revolta quando da intromissão equivocada no jogo. Porque o desacerto maior já foi cometido, Arnaldo. O grande erro foi adotá-lo. O problema do VAR não é de uso, é da sua filosofia, do que ele significa.

Imagine se amanhã ou depois, Arnaldo, um governo aqui ou em qualquer parte diga que será necessário instalar câmeras em todos os lugares, dos espaços públicos àqueles reservados para a intimidade, para inibir o crime e, claro, melhor investigá-lo. É muito provável que uma medida assim tenha bastante apelo – e vimos no último pleito eleitoral exemplos disso, afinal se basearia no pretenso combate ao crime e contra aqueles que o perpetram. Mas qualquer pessoa mais ligada nas questões éticas já de antemão há de ter percebido no que implicaria, que qualquer coisa nesse sentido limaria por completo a nossa noção – cada vez mais uma noção e menos uma realidade – de liberdade e privacidade. É provável que a medida supracitada fortalecesse o combate ao crime (mesmo que claramente gerando outros), mas a que preço?

As questões que se colocam na implementação do VAR não são muito diferentes, Arnaldo. Inclusive porque a idéia de adoção do VAR bebe na mesma fonte das crenças e concepções que citei anteriormente e que fazem parte dos consensos da superestrutura do mundo que vivemos hodiernamente, que servem para justificar e esculpir todo o tipo de ação e solução, mesmo as mais infames, desde que para atingir uma suposta finalidade com apelo popular. Como pode você discordar das medidas para combater a criminalidade de determinado candidato, Arnaldo? Veja só! Que importa se elas deturparão o estado de direito? É para combater o crime! Você é a favor do crime?

Repare na armadilha e no peso que ela tem. E quantas e quantas vezes elas não foram, são e provavelmente continuarão a ser usadas para atacar quem ousar criticar o VAR. Você é a favor do erro no futebol, do roubo, da maracutaia? – Perguntam insistentemente já incriminando quem ousa divergir. Ora, é claro que não se trata disso. Mas da defesa da espontaneidade, do significado e da cultura do jogo. Aliás, que se diga em alto e bom som: um jogo. Essa busca insana, maluca e ignorante de justiceiros é compreensível (e compreender é diferente de concordar) quando atreladas às relações sociais. Entende-se bem os efeitos danosos no tecido social da injustiça – se bem que, como tem se visto, ela está a ser percebida pela população mais na sua superfície, nos efeitos, do que nas causas. No entanto, quando levada ao futebol, que não tem o intuito a priori de ser justo, mas de divertir, entreter, deixa de ser uma simples leitura ruim de mundo pra virar em uma completa aberração.

Há mesmo quem diga que o foco do futebol é a justiça. Quem diz isso não entendeu nada, absolutamente nada. Não estamos falando de um tribunal. E mesmo, repare, a concepção de justiça aqui é equivocada, superficial e parcial. Porque ela só se atrela à aplicação das regras do jogo no campo a ignorar uma série de outras questões fora dele: as disparidades financeiras; as regulações que favorecem uns em detrimento de outros; a própria mídia de maneira geral, que dá mais espaço para os que proporcionam mais audiência, que não por acaso são os mais ricos (numa relação viciosa que se retroalimenta) e que são no futebol neoliberal e mercantilista, por comprar os principais jogadores de forma ilimitada, os que mais vencem – ou os que sempre vencem, matando a imprevisibilidade do jogo e boa parte daquilo que ele tem de melhor.

E veja: aqui não se trata em nenhum momento da crítica à modernidade e à possibilidade do futebol empregar a tecnologia. Esse é mais um dos estratagemas dos fundamentalistas do VAR. Ninguém aqui se opôs, por exemplo, à tecnologia da linha do gol. Não somos hostis à tecnologia, mas sim a algumas formas de seu uso. Assim como não somos contrários às câmeras, mas não as queremos em nossos quartos e banheiros. O VAR cria faltas que o olho humano não vê, elimina a explosão espontânea e orgásmica do gol que com ele não se sabe se valeu – e aí tem de se esperar, esperar, esperar e ou se frustrar imensamente, numa melancolia infinita, ou tentar voltar a capturar o ímpeto do orgasmo de onde ele foi interrompido, como se possível fosse. Ora, meu caro, isso é tudo menos o espírito do futebol que aprendemos a amar. No futebol não se faz ponto, se faz gol. O gol é único, especial, raro – como o próprio futebol. Sequestrá-lo em nome desse senso justiceiro é cometer um crime contra o jogo e tudo que de especial o envolve. Imagine você o abraço da criança no avô, como aquele que dei no meu quando do gol do Ronaldo contra a Holanda, em Marseille, numa explosão de alegria, espontaneidade, de pura alacridade, estar “sub judice” por três minutos e depois ser anulado. Não será apenas o gol que terá sua validade negada. É sobretudo a experiência mágica e de vida que ali se teve. Ela é que será jogada no lixo.

Mas, para além dessas razões todas, caro Arnaldo, e que a meu ver já são o bastante para ficarmos deprimidos, há outro motivo para que eu tenha resolvido escrever esta carta pública direcionada a você. E é em verdade o motivo precípuo, principal e é ele bastante simples – e igualmente triste: você deve parar de criticar o VAR porque simplesmente não adianta. Não adianta rigorosamente nada. Entre risos e ironias daqueles que se acham portadores da verdade, que se crêem representantes de boas novas de evoluções naturais, a cegueira, meu caro, ela venceu. Os idiotas da objetividade, como falava Nelson Rodrigues, ganharam a luta. Os dias atuais são deles. O que é nosso, Arnaldo, é o futuro. Mas resta saber se nesse futuro chegará vivo o futebol. Porque o esforço para matá-lo deturpando seu espírito tem sido uma das marcas desses tempos estranhos e hostis aos que aprenderam a amar o futebol pelo que ele sempre foi e deveria ser: um jogo.

* De: Wanderson Marçal, 27 anos, historiador, professor e colunista deste mesmo Disparada.

* Para: Arnaldo Ribeiro, 47 anos, que é um dos mais importantes comentarista esportivos do País, hoje editor-chefe dos canais ESPN e que teve passagem por importantes veículos como Folha, Estadão e revista Placar