Blade Runner e a distopia brasileira

Blade Runner
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Blade Runner

Numa das entrevistas mais assistidas do programa Roda Viva, em série com os presidenciáveis deste ano, Ciro Gomes foi solicitado a citar um filme. A resposta: Blade Runner. Uma escolha curiosa, sobretudo para o momento em que vivemos.

(Alerta de spoilers)

Blade Runner é um verdadeiro cult, filmado no início dos anos 1980, galgou gerações com sete reedições, até conhecer uma sequência no ano passado. Mais que ficção científica, é uma distopia social, e suas projeções futuristas se fazem mais presentes hoje do que ainda faltariam se cumprir. Claro que não nos referimos a carros voadores, mas à tragédia social de se turvar a noção de humanidade, rejeitá-la àqueles que, mesmo brutalizados pela vida, tentam agarrar-se à esta. A resultante é o medo. “Uma experiência e tanto viver com medo, é o que é ser um escravo”, frase em que Roy Batty, antagonista principal e líder dos andróides, inicia o seu monólogo derradeiro, logo que salva da morte quem o caçava (o Blade Runner), até esgotar sua existência biosintética, na curta expectativa de vida celular que lhe haviam programado.

No filme, passado no longínquo ano de 2019 (!), os andróides, chamados replicantes, foram fabricados para trabalhar, cumprir funções utilitárias, humilhantes ou perigosas, servindo à colonização de Marte. Os avanços da Inteligência Artificial e da Engenharia Genética foram tais que humanos e replicantes tornam-se indistinguíveis entre si, na aparência e nos modos de relação. São máquinas semiorgânicas, que sentem ou acreditam sentir (ou sentem acreditar), querem viver mais do que o tempo para o qual foram projetados e, enfim, rebelam-se. Sentir, acreditar, querer… e rebelar-se para continuarem sentindo, acreditando, querendo. O que não fazia sentido ao Blade Runner, para quem os replicantes não se diferenciavam de uma torradeira que perdeu a razão de existir antes do prazo de validade — a mesmíssima visão do fabricante que os produziu, a Tyrell Corporation.

A interrogação mais suscitada pelos que se aventuram a analisar o filme é: o que nos faz humanos, então? O caçador de androides, no decorrer das perseguições (ao ser salvo por Roy Batty ou ao se apaixonar por uma replicante), visivelmente carregou a pergunta no peito. É uma questão essencialista meio duma perseguição. O impasse da pergunta, pelo status ambíguo dos perseguidos, entretanto, parece ser apenas um ingrediente para relativizar a realidade evidente de suas relações concretas com a vida. O objetivo final da caçada é o menos metafísico possível: inibir choques nos custos de produtividade dos esforços de colonização, e a sinuca de bico filosófica pouco fez para freá-la — ociosidade do tipo ‘in dubio pro capital’. Endurecia-se a commoditização de uma nova classe de corpos e mentes produtivas, que então formavam sua própria noção de si perante o outro, negando-lhes não apenas a humanidade, mas a consciência em construção de seu lugar ao mundo.

O propósito do Blade Runner não se limita à caçada individual de máquinas de carne tecnologicamente avançadas por serem desobedientes, é servir ao estabelecimento de uma negação social, porém altamente produtiva. Mais do que ficção científica, esse é precisamente o roteiro da distopia brasileira.

Aos ‘interesses internacionais’, como sintetizava Brizola, a inferiorização do moral dos colonizados é necessária para sedimentar o que os economistas chamam de vantagens competitivas, naturalizadas na medida em que o ‘subdesenvolvido’ é garantido como menos apto, e sua função essencial se limite a ser mão-de-obra e fornecedor de si mesmo. O imperialismo tem várias camadas de sentido, de dentro pra fora. Por isso o complexo de vira-latas é um instrumento para extração eficiente. Nossa humanidade não é feita da mesma matéria, nossa alma não tem a mesma cor, nossa memória é programada para se desprogramar. Somos replicantes.

Duvidar desse status é um defeito, um defeito de produção. E não uma produção nossa, para nossos interesses. Estes devem ser guiados por aquilo que as vantagens competitivas nos conduzem, pelo preço (dolarizado) de mercado, um mercado cujos padrões de consumo devemos interiorizar para ‘estar no mundo’.

Não adianta, porém, livrar-nos duma programação por outra. Num primeiro nível é preciso despertar a coragem (das lideranças), a energia (popular), inteligência e sensibilidade (nacionais), o que só acontece quando o país se encontra consigo mesmo. Desse encontro, numa etapa posterior, as reformas para alcançarmos metas que correspondam a anseios nacionais, de um programa de desenvolvimento que leve em conta nossas estruturas e trajetória. Um programa nacional de desenvolvimento dentro de um projeto de nação. Assim o Estado poderá unir as pontas (das necessidades de saneamento básico aos gargalos da construção civil, por exemplo), que é a sua grande razão de ser, e zelar pelo seu povo.

E voltamos à negação da humanidade das máquinas de carne. A aceitação passiva e naturalizada da precarização do nosso próximo nunca caberá num projeto de nação. Desenvolvimento implica, necessariamente, mobilização, mobilização de recursos, de gente, de propósitos comuns. E isso nunca será articulado sem a esperança e a confiança na própria emancipação. Suprimir o espírito do brasileiro é escravizá-lo, e não por encruzilhadas existenciais no oco do mundo – as razões de nossas desconstruções são menos metafísicas (como também mais mesquinhas). E a superação nos será tão prática quanto a dimensão de nossa consciência por realizá-la (e lutar por ela).