Carta à Preta Ferreira

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Nesta virada de ano, tive a oportunidade (e imensa honra) de ler o recente livro de Preta Ferreira (Minha Carne: diário de uma prisão, publicado pela Boitempo). É uma leitura que se faz extremamente rápida, pois prende o leitor do início ao fim. Literalmente, li em dois dias – no último do ano passado e no primeiro deste, mas acredito que os mais ávidos podem fazê-lo em um dia. Trata-se de um Manifesto.

É, também, uma leitura obrigatória. Falo isso, especificamente, sobre a área jurídica (na qual estou inserido). É obrigatória a leitura na graduação e na pós-graduação (stricto e lato sensu) e concursos. Faltará algo de atual na crítica, se não houver essa leitura para a criminologia, sociologia jurídica, direitos humanos, direito constitucional, direito político, direito penal – entre outros. Faltará realidade para os profissionais que forem assumir cargos públicos, sem a leitura dessa obra para concursos (ou no início de cada carreira).

O livro é completo. Em seu relato dos dias no cárcere, Preta Ferreira consegue demonstrar uma sequência de falhas e faltas, bem como a intencionalidade disso. Seu olhar é essencial, pois, como diz, ela não estava olhando de fora – era mais uma vestindo calça marrom.

Apartheid

Preta denuncia o apartheid que existe dentro dos presídios, entre as celas especial e comum. Com isso, ela ressalta a necessidade de formarmos mais pretos e periféricos no ensino superior (é urgente!). Nós, pretos, não vamos cometer crimes (jamais será nossa intenção), mas a estatística está favorável às nossas abordagens e prisões indevidas e injustas. O diploma é a última proteção contra essa política genocida.

Apesar deste apartheid, o descaso e maltrato é bastante democrático – serve a todas as “reeducandas”. As condições ficam ainda piores quando se trata de uma cela comum.

Interseccionalidade

A prisão de Preta Ferreira foi mais uma prisão política, injusta, direcionada. Fica nítido, em seu livro, mais uma intersecção: racismo e movimentos sociais. Há alguns anos (talvez 520), os movimentos sociais são perseguidos, diminuídos, enfraquecidos e criminalizados. Nos últimos anos, a criminalização dos movimentos (ainda que meramente pelo discurso) aumenta constantemente.

Foi por sua luta por moradia – e intenções criminosas de terceiros – que Preta Ferreira foi presa. A luta por moradia se ampliou (ainda mais), tornando-se uma luta contra outras injustiças, incluindo sua própria prisão.

Necessidade de humanização

Preta Ferreira mostra como a cadeia mói (ou tenta moer) a carne humana, sem distinguir culpado de inocente. Por isso, a revolta de quem foi preso injustamente, sentida o tempo todo no livro, é imensa. É essa revolta que deve se espraiar para quem desfruta de liberdade, jamais foi preso e luta por justiça.

Até mesmo quem prega pela morte do bom bandido, deve compreender que o sistema deve seguir regras que humanizem. Isso não deveria se tratar de mero discurso de quem acredita em direitos humanos, ou de quem está à esquerda no espectro político.

A busca por esse objetivo (humanização do sistema carcerário – ou meramente sua legalidade) é necessária, pois, no mínimo, há inocentes, injustiçados, e pessoas que já cumpriram a integralidade de sua pena, mas (por falhas e faltas) continuam presas. Até mesmo as classes mais altas (como socialites) podem sofrer, ainda que poucos dias, com esse efeito colateral do sistema criminal.

A obra permite verificar o tratamento imensuravelmente desumano concedido, desde a primeira abordagem, a quem está sendo preso. Por tal situação, é melhor ficar dias sem comer a ingerir a podridão que é servida. O Manifesto de Preta Ferreira permite enxergar nitidamente as mazelas do sistema carcerário, mas não apenas isso.

Solidão

O que se demonstra no livro, também, é uma imensa solidão e infelicidade. Esses sentimentos, que parecem perpétuos, não são exclusividade de quem está cumprindo pena criminal. Preta Ferreira mostra que as guardas, os carcereiros e demais funcionários de presídios também sofrem, e muito, com isso. Não é possível afirmar que eles não cumprem alguma pena, pois não podem ter livre comunicação todos os dias, trabalham em locais de insalubridade e periculosidade, além de, nos piores casos, ter a sua vida e a de seus familiares posta em risco. Tudo isso para defender [quem manda n]o Estado. Os direitos humanos são também para estas pessoas.

A obra mostra a importância das religiões para que as pessoas (inocentes ou não) não se revoltem ao ponto de preferirem ter o crime como carreira; ou cometer ações muito piores do que as que (falsa ou verdadeiramente) as levaram até lá. Até para quem acredita que essa espiritualidade é apenas ópio, deve haver a compreensão de que o ópio alivia uma dor que o corpo e a racionalidade não mais conseguem.

Além das diversas tentativas de suicídio, o livro denuncia a situação de diversas mulheres que estão no cárcere em razão de maridos, namorados e companheiros. As prisões podem ter sido legais* ou injustas, a injustiça maior reside no abandono, na quebra de confiança e nas práticas que as mulheres sofrem cotidianamente.

Prisão política

Após ser presa por política, Preta Ferreira fez política. Com isso, ela transformou a vida de diversas pessoas – “reeducandas” e funcionários. Ela atuou, dentro do cárcere, para melhorar a vida de quem lá estava e para garantir uma vida a quem de lá saía.

A presença de Preta naquele local terrível – no qual, se houvesse Justiça, ela jamais teria entrado – foi uma presença política. Preta Ferreira serviu de fiscal, contra o abuso e o abandono do Estado.

No tempo em que esteve presa, ela recebeu diversas visitas importantes (políticos, deputadas estaduais e federais, presidenciável e presidente de partido político), além de conceder diversas entrevistas (as quais espero assistir neste mês). Foram essas visitas e essas entrevistas que fizeram Preta Ferreira ter sua história verdadeiramente conhecida, até mesmo por funcionários (guardas e diretores) do presídio. Quem conhece sua história, sabe de sua inocência.

Por outro lado, quem lê as decisões que a encarceraram pode ter duas impressões. Em uma leitura acrítica (e equivocada) das decisões, pode-se supor que a toga cumpriu seu dever legal de dizer a norma, que agiu corretamente. Quem consegue fazer uma leitura real e crítica das decisões, compreende que trata-se de opinionismo ideológico. A vontade política de poucas pessoas (entre Polícia, Ministério Público e Judiciário) colocaram Preta Ferreira no cárcere.

Sistema Judicial

Esse é um outro ponto-chave do livro. A crítica ao sistema judicial brasileiro – acertada e necessária crítica. Não é possível que os denunciantes e julgadores se mantenham como uma casta, que desconhece completamente a situação de 95% da sociedade brasileira. Quis o destino que a minha leitura anterior à obra de Preta Ferreira fosse o livro indicado e finalista do Prêmio Jabuti em 2020, Pensando como um negro, do professor e doutor Adilson José Moreira.

Essa crítica não vai para todos os executores. Contudo, sem dúvidas, vai para todos os denunciantes e julgadores, com pouquíssimas exceções. A polícia, porém, é outra vítima desse sistema. Com exceção de quem efetivamente a comanda, a classe policial age em favor de uma classe social que não é a sua (e, geralmente, de um grupo racial que não é o seu).

A crítica ao braço executor de todo esse sistema é a de que se contraponham às ordens que recebem. Que humanizem seus trabalhos. Ter consciência a qual lado de um interesse maior pertencem é essencial para a saúde de quem está preso e para a de quem fecha a tranca.

A consequência para essa falha intencional do sistema judicial (e do sistema carcerário, o que leva a considerar grande parte das prisões como políticas), indicada por Preta Ferreira, é a manutenção e ampliação da desigualdade social. Os crimes mais graves e cruéis, segundo Preta, são cometidos por pessoas de classes mais altas. Contudo, os piores tratamentos são destinados às pessoas das classes mais baixas (e às pessoas pretas). Isso reforça que as falhas e faltas são intencionais: o propósito ideológico disso é a capacidade de o Direito servir unicamente para a manutenção do status quo.

Pandemia

Preta Ferreira trata, ainda, sobre a pandemia de COVID-19. Mais uma vez, essa escrita é feita belamente.

Durante toda a obra, meu pensamento foi intercalando entre a realidade apresentada no livro e a realidade que o mundo todo (por maior ou menor período) deveria ter seguido – isolamento social. A comparação do cárcere com ficar em casa para poupar vidas chega, em um primeiro momento, a ser cômica (e, sim, algumas pessoas fizeram essa comparação).

Porém, o Brasil se mostra de diversas maneiras. Ficar em casa não é sempre ter espaço suficiente para viver bem, pedir comida (refeição ou mercado) para chegar na porta de casa. Em mais um sintoma de nossa desigualdade, o Brasil mostra que existem pessoas que podem ficar em casa, mas outras não; casas que comportam seus moradores, mas outras não; finanças pessoais que sustentam sua sobrevivência, mas outras nem sequer existem; hospitais que curam a maioria de seus paciente, mas outros não.

Questiono-me (dentro da minha realidade mimada e privilegiada) se alguns (ou vários) lares brasileiros seriam, em meio à pandemia, piores que o próprio cárcere. Tal questionamento me vem sem vivência de nenhuma dessas realidades na pele – peço desculpas, mas quero que isso se mantenha até o fim dos meus dias. Os reflexos da pandemia (após alguns flagrantes de reveillón) mostram que não mudamos, nosso egoísmo e nosso individualismo mantêm-se. A nossa pandemia não é a doença do coronavírus.

Infelizmente, Preta Ferreira saiu para usufruir pouco de sua liberdade, mantendo-se em casa desde março de 2020. Ainda assim, incomparavelmente melhor do que a injustiça praticada com ela desde junho de 2019.

Transformações

A presença política de Preta Ferreira no cárcere foi motor de transformações. A obra aborda, ainda que sucintamente, alguns pensamentos e projetos de Preta Ferreira para o futuro. De fato, são cada vez mais transformações.

Porém, até a concretização desses projetos, há imensas preocupações. O que será das “reeducandas” sem as entrevistas de alguém que vivencia essa realidade? O que será das “reeducandas” sem as visitas importantes que Preta recebia?

Tudo isso deveria ser desnecessário. Ainda que não quiséssemos pensar o abolicionismo penal, a desumanização do cárcere não deveria ser um caminho. Infelizmente, até hoje, tem sido o único caminho que o Estado brasileiro e seus políticos pensaram em trilhar.

Agradecimentos

Dou ao texto título de Carta pelo livro, mas também para que se entenda que se trata de uma conversa franca. Contudo, a Carta é, sem dúvidas, para agradecer. Preta Ferreira, obrigado pela obra e muito prazer em conhecê-la; Érica Malunguinho, provavelmente, nenhum texto sobre este livro será melhor que o que escreveu nele.

Preta Ferreira, se acaso chegar a ler essa Carta, aproveito para agradecer, também, por conhecê-la (tardiamente, através do livro). Sem dúvida (e não por acaso), essa obra e o MSTC são obrigatórios para mim, principalmente pelo longo trajeto de pesquisa acadêmica que se inicia neste ano.

Que as lutas contra injustiças sejam efetivas e, assim, possam acabar com o sofrimento que agiganta e fortalece. Que os heróis (e as heroínas) não sejam necessários.

Pessoas Pretas Livres!

* Não vou abrir a possibilidade, neste texto, de afirmar que uma prisão é justa, quando se tem um sistema carcerário injusto.

Minha carne preta ferreira