Chernobyl da HBO mostra que só o patriotismo salva

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Boris Shcherbina ( Stellan Skarsgård), Ulyana Khomyuk (Emily Watson) e Valery Legasov (Jared Harris)
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A expectativa sobre filmes e séries que tem como assunto a União Soviética, ou qualquer país do socialismo real, feitos no ocidente é sempre de pura propaganda anti-comunista. Ainda mais para uma produção tão hollywoodiana como a série Chernobyl da HBO, que estreou em 2019. No entanto, apesar da série desenhar caricaturas e esteriótipos corriqueiros sobre a burocracia e ineficiência soviética, o resultado é absolutamente contra-intuitivo e sofisticado em diversas outras dimensões. A grande narrativa da série da HBO, sobre o acidente na Usina Nuclear Vladimir I. Lênin em 1986 em Chernobyl na Ucrânia, é de que só o patriotismo salva.

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Esteticamente a série é excelente, e pode ser vista como puro entretenimento. O drama multifacetado através do sofrimento e agonia de diversos personagens, sejam pessoas poderosas tomando decisões difíceis ou pessoas comuns tentando sobreviver, e o realismo cinematográfico que mostra os efeitos da radioatividade com cenas chocantes das vítimas praticamente derretendo, já valem a pena.

Os cenários internos incrivelmente reconstruídos, a arquitetura soviética, e o figurino fidedigno de época, dão a sensação de viagem no tempo e no espaço que só o cinema é capaz de dar. Além disso, a série é muito bem roteirizada seguindo a cronologia dos fatos, didática nas explicações de como a usina nuclear funciona, e no desvelamento das causas da explosão do reator atômico, considerada fisicamente impossível até então.

Como eu disse, a série não escapa dos clichês estereotipados sobre a União Soviética. A obsessão da burocracia do Estado soviético pelo segredo, propaganda e disciplina, geram ineficiência, incompetência e desastre. A hipocrisia é óbvia, e ficar rebatendo isso com exemplos iguais nas “democracias” liberais do ocidente é desnecessário. Mas, surpreendentemente, essa não é a tônica da série da HBO. Se o “vilão” é o burocratismo estatal, tão incompetente quanto arrogante, o “herói” é a conflituosa relação patriótica entre a burocracia e o povo.

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Uma vanguarda de brilhantes cientistas, disciplinados militares, e habilidosos políticos (os odiados burocratas), lideram o povo soviético na luta contra uma catástrofe de proporções bíblicas em seu território.

Os três protagonistas são os físicos nucleares Valery Legasov (Jared Harris) e Ulyana Khomyuk (Emily Watson), e Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), vice-presidente do Politburo, o órgão máximo do poder político soviético, à época presidido por Mikhail Gorbachev, o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. Enquanto Legasov buscava soluções para o vazamento nuclear radioativo, Khomyuk investigava a causa da misteriosa explosão. A cientista soviética precisa demonstrar grande coragem para fazer as perguntas que a KGB não quer que sejam feitas, assim como Legasov precisa impor a verdade dos fatos para que os burocratas ajam para resolver os problemas causados pela exposição do núcleo de um reator atômico gigantesco.

Mas é Shcherbina, o autoritário e arrogante carreirista do Partido, que tem o poder de decisão e ação. É a sua capacidade de ser convencido pelos cientistas, e de convencer os líderes políticos da alta burocracia estatal, que mobilizam os homens, recursos, e até a diplomacia necessária para enfrentar uma crise radioativa, além de ter que lidar com o Estado paralelo que é a KGB.

A série tripudia do “poder operário” ao mostrar caricaturas de burocratas que não tem qualificação técnica para ocupar cargos importantes que envolvem ciência, tecnologia e engenharia, pois são ex-trabalhadores braçais, mas que ascendem socialmente pela política. No capitalismo pessoas incompetentes assumem posições de comando apenas por herança e dinheiro. Qual sistema é mais meritocrático?

Boris Shcherbina é a prova de que um burocrata não é um mero oportunista desqualificado tecnicamente. Sua técnica é a própria política, a administração dos recursos do Estado nacional.

Shcherbina tem de enfrentar burocratas de patentes maiores que a sua, sob a permanente e invisível vigilância da KGB; convocar mineiros (talvez uma das categorias mais sofridas de trabalhadores) para cavar um túnel em tempo recorde embaixo de uma “lava” nuclear que ameaça derreter o concreto de contenção e contaminar o solo de 50 milhões de pessoas; e recrutar pessoas comuns para uma missão suicida dentro da usina inundada por água radioativa para evitar uma explosão atômica.

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O político só é capaz de realizar esses feitos através da mobilização de um profundo sentimento patriótico. Após as explicações científicas dos físicos, e das repercussões catastróficas para milhões de pessoas da pátria soviética e também do mundo, os trabalhadores eram informados dos riscos letais que correriam, e da ausência de recompensa pelo quase-certo sacrifício de suas vidas.

Vocês farão porque deve ser feito. Vocês farão porque ninguém mais pode fazer. E se não fizerem, milhões morrerão. Se me disserem que isso não é suficiente, eu não acreditarei.” É este o comando de Shcherbina. Não é seu autoritarismo e arrogância que conseguem fazer as pessoas se sacrificarem pelo país, é o seu próprio sacrifício e patriotismo. Assim como um coronel que escolhe ir no lugar de seus homens medir a radioatividade dentro da usina, Shcherbina sabe dos efeitos da exposição constante a que está submetido por permanecer na região para administrar a crise. Tanto os militares, como o político, têm em seu sangue os sacrifícios da Grande Guerra Patriótica, conhecida como Segunda Guerra Mundial no ocidente.

Shcherbina chegou a disputar o poder com o entreguista neoliberal em ascensão Boris Yeltsin, mas morreu em 1990, cinco anos após o desastre de Chernobyl, em decorrência da exposição à radioatividade. Mas não sem antes chefiar uma missão para lidar com outra catástrofe de grandes proporções, o terremoto de 1988 na Armênia. Boris Shcherbina é a personificação da necessidade de uma burocracia patriótica e determinada para lidar com situações limite que colocam uma nação em risco.

A atuação de Stellan Skarsgard está a altura do personagem histórico, que com certeza foi bastante controverso, mas que deve ser considerado um herói nacional como retratado na série da insuspeita HBO, que não pode ser acusada de ser pró-burocracia soviética. O mesmo deve ser dito, mais facilmente sem polêmica, sobre os físicos envolvidos, notadamente Valery Legasov, em bela interpretação de Jared Harris. Ulyana Khomyuk, também na brilhante atuação de Emily Watson, é uma personagem ficcional composta, que representa dezenas de outros cientistas que colocaram suas vidas em risco para ajudar a resolver tão grave crise nacional.

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Boris Shcherbina (Stellan Skarsgård), Ulyana Khomyuk (Emily Watson) e Valery Legasov (Jared Harris)