Estado de conformismo social e a manipulação do desejo: uma reflexão crítica

Precisamos parar de aceitar o inaceitável e de sermos indiferentes às desigualdades; sair da inércia e voltar a importar com os problemas. São tempos difíceis e que requerem mudanças a partir de nós mesmos: questionar é necessário e posicionar-se frente aos absurdos é ato de resistência. “Não se trata de dizer “nós temos direito a isto porque somos aquilo”, mas sim “nós temos direitos a isto para nos tornarmos uma outra coisa””.
Botão Siga o Disparada no Google News

Conformismo: a pesquisa do seu significado no dicionário revela ser uma atitude e/ou tendência de se aceitar passivamente situações incômodas ou desfavoráveis, sem questionamento, luta e ação.

Ao projetarmos esse termo para o atual contexto social, identifica-se que, frente às inúmeras tensões e pressões político-econômicas, os indivíduos, conscientemente (e  inconscientemente) passaram a duvidar de suas próprias convicções, abstendo-se de expressar suas opiniões, especialmente quando elas divergem das pessoas e dos grupos com os quais se relacionam. O que se vê é que a busca pelo consenso se tornou mais importante do que o interesse pela reflexão mais acurada, posto que perturbadora.

Há quem diga que o fenônomeno que intitulo de “estado de conformismo social” é oriundo da sociedade contemporânea, marcada por relações de dificílima assimilação e, com isso, fazem com que seus membros simplesmente não tenham tempo e energia suficientes para se posicionar ativamente contra o que não lhes satisfaz. Dessa forma, os indivíduos sucumbem a um discurso superficial das coisas, incapazes de refletir e de se expressar sob a ótica crítica do pensamento.

Aqui cabe um parêntesis. O Professor Alysson Mascaro, ao discutir sobre a filosofia, sustenta que essa ciência é diferente de ideias que simplesmente servem para legitimar a sociedade estabelecida; “ela não é a máxima explicação do já dado, ela vai além do dado. Por isso, a grande filosofia é crítica [1].  Mais, aponta que o filósofo do direito pleno (e, portanto, crítico) “é aquele que, de posse do conhecimento filosófico, amplia os horizontes de seu tempo. Virulento contra as injustiças, aponta para o justo que ainda não existe [2]”.

A crítica que aqui é proposta, portanto, não é o simples ato pejorativo de julgar, mas o de discernir o valor e o sentido das pessoas e das coisas para que, com isso, possamos ultrapassar os limites dos nossos tempos. É refletirmos sobre como o “estado de conformismo social” é projetado e de que forma se expande na sociedade. Seria ele um dos elemementos utilizados pelo atual sistema capitalista que, ao determinar a subjetivação dos indivíduos, os seus interesses, as suas preocupações e, mais, o seu desejo, consolida parâmetros comuns e previsíveis de comportamento social, afastando as pessoas da luta e do questionamento crítico desse sistema?

É importante lembrarmos que, em momentos históricos pretéritos, o homem, insatisfeito e sedento por uma nova realidade, foi capaz de se voltar contra as estruturas políticas, econômicas e sociais que lhe fora imposta, gerando, com isso, mudanças definitivas na sociedade. A Revolução Francesa é um grande exemplo disso. Ora, o homem, em sua essência, não carrega consigo uma inclinação à resignação; pelo contrário, se tomarmos como base a Teoria Política de Aristóteles, o homem, por natureza, é um animal político – construído em torno das ideias e, diferentemente de todos os outros animais, dotado da razão e do discurso.

A pergunta que fica, então, é a seguinte: sendo o homem um ser essencialmente político, por que, nos tempos atuais, não conseguimos romper a barreira do conformismo?

Poderia utilizar muitas teorias filosóficas para responder a essa pergunta. Dentre todas elas, contudo, creio ser o pensamento de Gilles Deleuze [3] muito pertinente.

A filosofia deuleziana gravita em torno das causas políticas. A partir de uma crítica do capitalismo e do Estado da segunda metade do século XX, Deleuze busca compreender a forma como o Controle, enquanto manifestação de Poder, é exercido pelo Estado sobre os indivíduos mediante um complexo processo de captura do Desejo, para que tudo o que é diferente se torne previsivelmente igual.

Lucas Ruiz Balconi, explica que, para Deleuze (e Guattari) “não há dominação que seja apenas uma questão de submissão pela força, pela autoridade ou pela lei, mas assujeitamento pela captura do desejo. É justamente por isso, que pode-se compreender o gosto pelo discurso fascista, a satisfação pela violência, a excitação pela vingança [4].”

A dinâmica política proposta atualmente, portanto, é a de tornar imperceptível o comportamento dos movimentos e das singularidades individuais, de forma a “neutralizar a potência da invenção e codificar a repetição para subtrair dela toda possibilidade de variação, para reduzi-la à simples reprodução [5]. Não seria ousado inferir que os meios de comunicação de massas, nesse contexto, possuem predominante poder – qual seja, o de produção e de estabilização de pensamentos. Nas palavras de Deleuze, “estamos entrando nas sociedades de controles, que funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea [6].”

A reflexão filosófica de Deleuze convida-nos a pensar em uma nova maneira de pensar o Estado, não sendo mais uma relação entre alguém que manda e outros que obedecem. É preciso “compreender como se deseja, quais os motivos que levam as massas a querer sua própria repressão, bem como quais são os afetos que mobilizam tal desejo, como eles são produzidos para que eles possam ser desativados (…)”.

Para Platão, “o preço que os homens de bem pagam pela indiferença aos assuntos políticos é ser governado pelos maus”. Segundo o filósofo ateniense, o idiota era o cidadão que se dedicava exclusivamente a questões particulares e negligenciava a vida política, sendo o responsável pelo ambiente degradante em que vivia.

Não sejamos idiotas; sejamos capazes de utilizar nossas virtudes para ampliarmos o nosso campo de visão e nos apropriarmos do nosso verdadeiro papel social. Precisamos parar de aceitar o inaceitável e de sermos indiferentes às desigualdades; sair da inércia e voltar a importar com os problemas. São tempos difíceis e que requerem mudanças a partir de nós mesmos: questionar é necessário e posicionar-se frente aos absurdos é ato de resistência. “Não se trata de dizer “nós temos direito a isto porque somos aquilo”, mas sim “nós temos direitos a isto para nos tornarmos uma outra coisa””.

Certa vez, ouvi um admirável professor dizer que “precisamos parar de chegar atrasados na vida das pessoas, nas nossas vidas, no nosso mundo”. Que todo o dia seja um dia de reflexões, de críticas e, a partir deles, de mudanças.

Avante!

Referências

Referências
1 MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. 5ª ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 7.
2 Ibid., p. 17.
3 Gilles Deleuze (1925 – 1995). Filósofo francês cuja filosofia vai de encontro à psicanálise, nomeadamente a freudiana. Sua filosofia é considerada como uma filosofia do desejo.
4 BALCONI, Lucas Ruíz. Direito e Política em Deleuze. 1ª ed. – São Paulo: Ideias & Letras, 2018, p. 75.
5 LAZZARATO, Maurizio. As Revoluções do Capitalismo. Tradução de Leona Corsini. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2006, p 70.
6 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 215.