Consciência negra: o que a psicanálise pode dizer do racismo?

Consciência negra o que a psicanálise pode dizer do racismo

Foi mais recentemente que a psicanálise passou a tomar as questões históricas e sociais como objetos de estudo. Então, a gente não encontra muitos trabalhos sobre o tema do racismo e, quando encontra, são, como devem ser, muito pontuais, já que o racismo de cada lugar do mundo é UM racismo.

Recentemente, eu li um livro da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, chamado “Americanah”, e já o recomendei pra tanta gente que perdi a conta.

A personagem principal é uma mulher nigeriana que vai estudar nos Estados Unidos e acaba construindo uma carreira por lá. Para ela, a questão racial não existia. Não havia essa coisa de divisão de raças, pois na Nigéria todo mundo é negro. E então ela chega num país onde o racismo tem raízes antigas, mas permanece velado. As pessoas diziam que ela era bonita de um “jeito diferente”, ou usavam adjetivos exagerados para referir-se às pessoas negras, por exemplo, ao invés de dizerem que uma mulher negra havia chegado, diziam que uma mulher maravilhosa acabara de chegar, na tentativa bem intencionada (mas não tanto) de fazer desaparecer a cor da pele, de fazer desaparecer a diferença de estar no mundo num corpo de pele branca e num corpo de pele negra.

A escravidão foi um grande delírio da humanidade. Hoje parece absurdo pensar que aconteceu, mas é preciso que a gente se lembre de que a fantasia da supremacia durou muitos e muitos anos e ainda respinga em todos nós, não há como negar. É por essa fantasia de força e domínio que a questão do racismo está, na maioria das vezes, atrelada à outras questões como, por exemplo, a pobreza, a falta de oportunidades e de direitos. Nesse livro que eu citei acima, a personagem acompanha toda a campanha eleitoral do Obama. É absurdamente emocionante o relato que ela faz da vitória e do que aquilo representou para os cidadãos negros americanos: um homem negro na presidência da república. Mas, ao mesmo tempo, ela diz que agora Obama deixaria a negritude para trás.

Ele não seria mais “o homem negro que venceu a eleição”, ele seria Obama, como se, para o mundo, a questão racial de fato desaparecesse quando se atinge um lugar de poder que é comum aos brancos. Isso é muito importante de ser dito: no racismo, a cor da pele não anda só.

O que a psicanálise faz e pode fazer por esse tema? O que tem feito, mas talvez com mais significância. Não é possível que a gente deixe essas questões para trás, muito menos num país como o Brasil. Se o racismo é um sintoma social, como a gente faz quando ele entra nos consultórios, através dos discursos dos analisados? A gente escuta, pinçando naquele discurso o que há de singular, separando cada significante das identificações e expectativas sociais, para implicar o sujeito em suas palavras e decisões. Isso não quer dizer que seja possível separar o sujeito de seu contexto social e da história do mundo, isso é uma bobagem, estamos todos submersos numa história que não é a nossa, mas na qual a nossa se amarra, invariavelmente. Mas no divã de um psicanalista lacaniano, em que todo sintoma atinge, em algum ponto, uma coisa inexoravelmente única, é preciso tentar ouvir o que está além dos ruídos sociais. O que cada pessoa negra pode dizer do racismo é mais importante para a psicanálise do que qualquer outro discurso.

E na posição de analistas cidadãos, a escuta deve permanecer, pois é uma escuta muito, muito significativa. Uma pessoa branca não deve ouvir sobre racismo tentando compreendê-lo, pois ele será sempre estranho, nunca familiar. Deve ouvir porque é ouvindo que se entrega ao outro o poder da palavra sobre si mesmo; deve ouvir porque todo mundo tem direito a contar sua própria história sem que alguém esteja tentado a completar as lacunas.

Por Cauana Mestre

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