Contra o neoliberalismo, nada mais prático do que uma boa teoria

Ilustração de um busto masculino com a cabeça aberta. Do buraco sai uma grande quantidade de mercadorias.
Botão Siga o Disparada no Google News

Não à toa a frase como parte do título deste texto ter sido proferida por um refugiado do regime nazista: Kurt Lewin, que, segundo a enciclopédia livre Wikipédia, seria um dos fundadores da “psicologia social”. Mas pergunto se não haveria um quase pleonasmo nessa expressão. Afinal, o que seria a psicologia sem o “social”?

Além de sua frase que guardo como espécie de mantra metodológico – “nada mais prático do que uma boa teoria” – outros elementos de seu pensamento iluminam o que imagino como necessidade básica para compreendermos o que vem acontecendo com o Brasil e o mundo hoje, isto é, entender os nexos entre o singular e o geral. Enfim, o que está acontecendo com nossas vidas.

Vejam esta passagem de Lewin: “Temos que conceber a vida do grupo como o resultado de constelações específicas de forças dentro da conjuntura mais ampla (…) o campo como um todo, incluindo seus componentes psicológicos e não psicológicos.” Conforme sua visão, esse texto que escrevo agora é pesquisa de campo.

Para Lewin, quando fazemos “pesquisa de campo” não estamos indo a determinado terreno externo aos nossos corpos ou ao nosso pensamento. Isso porque, ao escrever, já estou no campo, isto é, estou no tema. Tanto eu como você, leitor, estamos em pesquisa de campo neste momento. Daí o apreço pelo pensamento e pela leitura. Daí a teoria como pesquisa de campo, a teoria fazendo parte da nossa prática de vida.

Que o neoliberalismo não se reduz a uma forma econômica, isso já vinha ficando mais do que claro ao longo das últimas duas décadas. Ou seja, a instrumentalização de tudo na vida para valorizar o valor, transformando o próprio sentido de ser humano, que não seria mais um “ser social”, mas sim espécie de robô a ser teleguiado por ondas de imagens momentâneas pautadas por forças poderosas.

A novidade talvez seja uma espécie de espírito necrófilo, como vitamina tecnológica de última geração, de suposta proteção do indivíduo isolado, preso em seus celulares, capturado pelos noticiários e pelas novelas da TV Globo, pelas imagens de violência dos programas do Ratinho ou do Datena e das falas e gestos tresloucados de governantes com sangue nos olhos e ávidos pelo sangue dos outros como verdadeiras alcateias.

É a exaltação da morte com a energia e a postura de “serial killers” de tudo querer exterminar, caso o que estiver em mira seja o outro – se for diferente, se for crítico, se o pensamento desestabilizar a poltrona do suposto conforto de sua individualidade de sonâmbulo morto-vivo.

O leitor já viveu a sensação do cheiro de sangue ou da morte depois de ver cadáveres em local de crime? Depois de carregar, sem querer, no inconsciente, a imagem do que não esperava ver? Espécie de coisa impregnada na pele com a ilusão de eliminá-la numa boa ducha quente?

Se um pombo esmagado no asfalto suscita algo estranho e repugnante, imagine-se a força incontrolável de desviar os olhos para os semelhantes que jazem? Entretanto, o neoliberalismo faz isso com as pessoas: empreende o desvio, mas depois prossegue satisfeito como se nada tivesse acontecido e se refestelasse após uma excelente e saborosa refeição. Pergunto: que sede é essa por morte e carnificina?

As lutas de classes nunca aconteceram somente no plano econômico entre donos de meios de produção e trabalhadores. Mas sim nos complexos processos configurados em diferentes instâncias e dimensões das relações entre pessoas, grupos, classes sociais, corporações e nações. Ao entrarmos no século XXI não deixamos de viver ainda o século XIX. Portanto, pior agora por carregarmos, com empáfia despudorada, a bandeira civilizatória, desde que sempre tingida de sangue. O anjo da história, lembrando a descrição de Walter Benjamin, verá talvez mais escombros em pouquíssimo período de tempo neste início de século do que em todos os séculos passados.

A política, que substituiria a guerra por seus meios específicos e parlamentares, transformou-se na busca pela guerra e por mais sangue no saque do salve-se quem puder. E para aqueles que leem essas palavras como exagero apocalíptico, lembro que a morte vem ocorrendo de várias maneiras. O cheiro da morte perpassa a fugaz visão do pombo esmagado, mas também as marquises sob as quais famílias se amontoam. As imagens dessas famílias ficam impregnadas na nossa pele mesmo que afastemos de nossa lembrança, mesmo que façamos o desvio.

A comemoração sôfrega pela morte e os aplausos da plateia sedenta no neoliberalismo da sociedade sem seres sociais estão distantes daquela sociedade remota que jogava seres humanos às feras. Entretanto, seu espírito tétrico amplifica-se ao gosto dos que se elegem prometendo matar, encarcerar, escravizar. Mirar na cabeça: René Girard tem razão com seu pensamento sobre o sagrado e o profano, dizendo que precisamos de bodes expiatórios permanentes. Quando não houver, inventa-se um para aplacar a sede, uma sede nova, que é a sede pela morte do futuro.

Muitos já morreram e não sabem. Até os bem intencionados jazem em seu recolhimento, acreditando que nada mais é possível fazer. Entretanto, só resta lutar aos que nada têm a perder porque já perderam tudo – mesmo emparedados. Uma dessas lutas parece ineficaz e sem sentido porque silenciosa e desprovida de ação imediata, mas inevitável e necessária: o exercício do pensamento, a problematização teórica. Duas e duras perguntas conexas: O que estamos fazendo de nossas vidas? O que os outros estão fazendo de nossas vidas?

Não basta a fuga para momentos transitórios de prazer e de euforia. Nem também a purificação do instante com a limpeza das imagens atrozes do mundo. Com o afastamento da imagem do pombo esmagado. Muito menos a espera de alguma transcendência. Tudo bem que alguns preferem rezar e praticar filantropia. Nada contra as formas que cada um encontra para apaziguar temores, esperanças, ansiedades. Nada contra as religiões, desde que honestas – desde que não explorem a fé dos desinformados para favorecer interesses capitalistas.

Mas, precisamos voltar a aprender a pensar. Notem que usei três verbos: voltar, aprender, pensar. Aprender a refletir e agir. Entender os nexos entre o singular e o geral. Ver que a economia não tem nada de economia sem a política. E que a política não é nada sem a economia. E que ambas formam a cultura. Não é porque temos a suposta capacidade “inata” do pensamento, diferentemente de outras espécies, que sabemos pensar sobre tudo. Aprender a pensar significa ir e voltar. Significa se perguntar: será que estou no caminho certo? Aprender a pensar porque toda hora precisamos aprender. E mais do que urgente: tentar compreender os nexos entre o neoliberalismo e esse espírito de carnificina na política e na economia.

Deixe uma resposta