Coringa retrata uma sociedade degenerada que os liberais não querem ver

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Embora ”Coringa” tenha sido aplaudido por oito minutos no Festival de Veneza, saindo da Europa com o Leão de Ouro, foi recebido de maneira bem mais controversa nos Estados Unidos.

A maior parte das críticas tem viés político: reclamam da ausência de um juízo de valor contra a violência. Ou ainda, da perspectiva ”populista” que retrata uma população tão revoltada contra as elites sociais e econômicas que faz do Coringa um herói, justifica seus assassinatos, e se engaja em protestos e quebradeiras generalizadas.

Existem também alguns escandalizados com as supostas similaridades do arco de Arthur Fleck e o fenômeno incel, aqueles adolescentes frustrados e dissociados do entorno social que acabam cultuando massacres e suicídios, encarados como atos supremos de poder e afirmação da personalidade.

Admito que essa avalição não está de todo equivocada. Phillips levou pra tela uma sociedade degenerada e corrompida, que saiu do controle de políticos e empresários, que não conseguiam mais ler ou conter a insatisfação do povo de Gotham.

As emoções populares se tornaram em impulso homicida contra a burguesia e os governantes, um estado semi-revolucionário em que reina a figura do palhaço assassino, grande símbolo do espírito niilista e do abismo caótico, que explode em violência anárquica.

E de certo modo, os incels na deep web são uma reedição ainda mais juvenil de aspectos em decomposição da sociedade do espetáculo que rompe gradualmente com os laços comunitários. É possível ver similaridade nessa condição contemporânea e na narrativa de Phillips, como também na de Scorcese em Taxi Driver.

Nada disso, por si só, é problemático. A acusação de que o diretor é irresponsável por criar uma história que supostamente glorifica a violência como saída para os conflitos pessoais e sociais é deslocada ao extremo.

Phillips não toma partido, ele apresenta a transformação de seu personagem, o que implica olhar o mundo, em certa medida, pela perspectiva de Arthur Fleck. Ainda assim, o Coringa não tem o argumento final, e na entrevista final no estúdio do comediante Murray, ele é visto pelo olhar do apresentador atordoado com as confissões que ouvia o palhaço fazer.

Seguramente, o filme deixa espaço aberto para que o espectador amarre alguns pontos do modo que lhe aprouver. Não existe um sistema de realidade estritamente fechado. É fácil se perder naquilo que é delírio do próprio Arthur Fleck, ou mentiras de alguns personagens.

O exemplo mais banal é a pergunta: Thomas Wayne teve ou não um caso com Penny Fleck? [afinal, havia uma fotografia da mãe do Coringa com uma dedicatória um tanto carinhosa feita por um T.W. Teria sido a própria Penny que a escreveu? Se Wayne a escreveu, implica num caso amoroso?]

Mas existem outros, que pretendo citar em uma resenha mais para a frente.

De todo modo, o verdadeiro problema foi exposto pelo próprio Joaquin Phoenix em uma entrevista em que lhe perguntaram sobre as polêmicas que o filme estava levantando: ”não cabe ao cineasta ensinar moralidade, ou certo e errado para o seu público!”

É tudo que Hollywood não quer ouvir, que o beatiful people odeia, que os progressistas não suportam. Eles tem de vender seus dogmas liberais através do cinema, e todo e qualquer outro dogma é vetado. Até o descompromisso ou uma maior isenção é repudiada. O liberalismo exige adesão total, absoluta. É um sistema totalitário. Tão opressor quanto os ambientes em que Arthur Fleck se sentia agrilhoado, no meio daquelas salas escuras, esverdeadas, bolorentas e cada vez mais tensas.

Por André Luiz Dos Reis