Coringa, Thanos, Greta e o fim dos tempos: o que os vilões têm a dizer?

Coringa subverte toda essa lógica. Arthur Fleck, submetido ao regime de escasssez que a população pobre e marginalizada é obrigada a suportar mesmo diante do regime de abundância sob o qual vivem seletos como Thomas Wayne

Quem acompanhou a evolução dos filmes da Marvel sabe de uma coisa: os vilões melhoraram ao longo do tempo. Ao invés de mero pretexto para a destruição que convoca os heróis para a ação, conforme a saga avançou seus vilões foram adquirindo motivações mais complexas.

Mas é somente em Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Vingadores: Ultimato (2019) que vemos finalmente um vilão de destaque, Thanos (cujas primeiras aparições na verdade datam de filmes anteriores). O que mais chama atenção na sequência das produções da Marvel, na verdade, é a crescente e paralela contestação dos próprios heróis.

Uma das frases mais famosas desse universo deriva da série do Homem-Aranha, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, que ficou eternizada no filme do aranha de 2002 protagonizado por Tobey Maguire.

Em certa altura do campeonato, a Marvel decidiu jogar com essa máxima transportando para a tela uma adaptação de Guerra Civil (2016) em que o Homem de Ferro e o Capitão América cindiram o grupo dos heróis numa disputa acerca da regulamentação de suas atividades. Quando os heróis poderiam agir ou não poderiam, estaria determinado num tratado internacional. Seus abusos e suas interferências em assuntos e territórios alheios alvoroçara a comunidade internacional, deixando escorregar o mito de que os heróis produziam segurança enquanto os vilões produziam desordem.

Já uma questão bem explorada, é consenso que, no fim das contas, os mocinhos da Marvel fazem as pazes e salvam o mundo.

Mas uma vez posta, a controvérsia permanece. Quando Thanos surge como antagonista dos Vingadores, a credibilidade dos heróis já está abalada. O argumento do vilão se fortalece:  a expansão ilimitada da vida, que gera destruição dos recursos finitos do universo, resulta em caos e colapso, portanto sua missão é exterminar metade da vida do universo, restaurando a ordem e o equilíbrio.

O poder ilimitado dos heróis, e o caos resultante de suas ações, se encaixa perfeitamente nessa narrativa.

Com as “joias do infinito” em mãos, Thanos surpreendentemente realiza seu objetivo. Num estalar de dedos, fez metade da população do universo inteiro desaparecer.

No filme seguinte, que encerrou uma fase da Marvel nos cinemas, o enredo abre com um planeta atacado pelo vazio, a natureza crescendo onde antes havia concreto, e pessoas lutando para lidar com suas perdas.

Como acaba, todos sabemos. Thanos ao fim é derrotado, a vida do universo é recuperada e todos os heróis que haviam desaparecido retornam para ajudar o Capitão América na batalha final contra a finitude. Os traumas emocionais são empurrados para baixo do tapete. Mas o telespectador é obrigado a lidar tragicamente com a morte de um de seus personagens prediletos, o Homem de Ferro, que se sacrificou, literalmente, para salvar o universo.

Assim termina o último filme dessa fase da Marvel. Saímos do cinema aplaudindo a vingança da quantidade. A euforia tomou conta das salas quando os heróis retornam.

Fica a indagação: mesmo que os heróis estejam frágeis e contestados, Thanos pode ser considerado um vilão que inverte os papéis? Pode ser visto como herói, como preservador do universo?

Obrigado a escolher entre seus heróis favoritos e um vilão motivado, o telespectador fica abalado porque sabe que o universo está, sim, em decadência. Em seu dia a dia, na vida real longe das telas de cinema, entende perfeitamente que há um conflito entre abundância e escassez.

Mas o filme omite um aspecto fundamental: a quantidade não é problemática em si. Mas para Thanos, é! Por isso, talvez, a mensagem derradeira do filme seja que precisamos de um mundo mais equilibrado, em que as pessoas estejam abertas a sacrificar seu conforto (Tony Stark não deixa para trás uma vida abundante e uma família linda para salvar tudo?) se quisermos evitar um Thanos entre nós.

Esse só pode ser o caso de uma sociedade que tem como pressuposto gastar seus recursos finitos até o limite, mas que ainda assim exige uma moral responsável dos habitantes de sua superfície.

Essa é, afinal, a tradução do capitalismo atual: aos habitantes do Primeiro Mundo e dos grandes centros cosmopolitas, sejam responsáveis e não utilizem canudos de plástico. Aos habitantes do Terceiro Mundo atrasado e pobre, sejam responsáveis e não ergam fábricas (que geram empregos), não queimem combustíveis fosséis (que geram a energia necessária para o desenvolvimento), não substituam a natureza por infraestruturas capazes de integrar seus territórios nacionais. Enquanto isso a produtividade das multinacionais segue firme.

Dê as joias do infinito a Greta Thunberg e a humanidade terá um destino não muito distante do desfecho de um filme dos Vingadores.

Coringa subverte toda essa lógica. Arthur Fleck, submetido ao regime de escasssez que a população pobre e marginalizada é obrigada a suportar mesmo diante do regime de abundância sob o qual vivem seletos como Thomas Wayne, se estabelece como agente do caos que pretende não equilibrar responsavelmente a balança entre finitude e infinitude, mas destruir absolutamente tudo e submeter os usufruidores da abundância ao medo e à incerteza que é o modo de vida normal da grande maioria.

Se Coringa tivesse sido lançado imediatamente após Guerra Civil, poderíamos fazer um paralelo ainda mais interessante: os heróis, leia-se, os fortes e privilegiados cuja ação recusa limites, são os verdadeiros agentes do caos.

Thanos, por outro lado, fica muito atrás de Arthur Fleck. A escala da violência entre o alienígena e o palhaço é incomparável, Thanos mata muito mais. Mas sua violência não gera absolutamente nenhum impacto estrutural, a humanidade continua vivendo como sempre após metade do planeta desaparecer. O capitalismo, o consumo em massa, tudo isso prossegue com uma população menor.

A violência de Arthur Fleck é essencialmente desestabilizadora. O telespectador não se entretém, sai perturbado. O palhaço desce uma cortina sobre a sociedade que a impede de ver como era a vida antes da violência, tornando simplesmente impossível prosseguir com o mesmo regime de escassez X abundância caso se deseje restabelecer a ordem.

A relação entre a quantidade e a distribuição precisa ser reconfigurada radicalmente em  Coringa. No desfecho da Marvel, essa relação precisa ser administrada, excessos não são bem-vindos de um lado nem do outro, acolhendo amigavelmente a esterilização do progresso humano.

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