A condição do Brasil na Década do Afrodescendente (2015-2024)

condição do Brasil na Década dos Afrodescendentes (2015-2024)
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A Década Internacional de Afrodescendentes foi proclamada pela Resolução n. 68/237 da Assembleia Geral das Nações Unidas e será observada entre os anos de 2015 e 2024, proporcionando uma estrutura sólida para as Nações Unidas, os Estados-membros, a sociedade civil e todos os outros atores relevantes adotarem medidas eficazes para a implementação do programa de atividades no espírito de reconhecimento, justiça e desenvolvimento.

Além disso, têm o objetivo de destacar a importante contribuição dada pelos afrodescendentes para nossas sociedades e propor medidas concretas para promover sua plena inclusão, o combate ao racismo, à discriminação racial, à xenofobia e à intolerância.

Os Estados Latino-Americanos e Caribenhos firmaram muitos compromissos para garantir a igualdade de todas as pessoas, sem discriminação, dentre eles o de “garantir a plena inclusão política, econômica, social e cultural de Afrodescendentes nas sociedades em que vivem como cidadãs e cidadãos iguais que gozam de uma igualdade substantiva de direitos”.

No entanto, parece que sequer houve ações efetivas para materialização desses objetivos, que foram construídos a partir da Convenção Internacional de Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1965, ratificada pelo Brasil em 1968.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do assassinato de jovens negros, em 2016, apontou que “os números que detemos comprovam a realidade assustadora do genocídio do jovem negro. Não podemos mais ignorar que esta parcela da população brasileira esteja sendo dizimada. Seja por ação dos órgãos de repressão, mediante intervenção policial; seja por omissão, pela falta de políticas públicas eficientes de redução das mortes, vemos que o Estado brasileiro é leniente com o referido genocídio”. Além disso, constatou que informações a respeito de cor/raça das vítimas de homicídios não são registradas, motivo que levou a Comissão, em seu relatório, a considerar “estarrecedor admitir a precariedade e o amadorismo dos mecanismos de segurança pública no nosso país”.

Apesar disso, os dados de Segurança Pública dos anos seguintes continuam evidenciando que as pessoas negras são os principais alvos das arbitrariedades policiais, causa de morte 2,7 vezes maior que a dos brancos. O Atlas da Violência (2020) apontou que o assassinato de negros aumentou 11,5%, enquanto de não-negros reduziu em 12,9%.

No mercado de trabalho, em que pese o acordo da Década do Afrodescendente e outros pactos de inclusão e redução das desigualdades, como a edição do Objetivo número 10 para o Desenvolvimento Sustentável, foi aprovada, em novembro de 2017, a Lei n. 13.467, que alterou a Consolidação das Leis Trabalhistas, impactando negativamente na vida dos trabalhadores. Os negros foram atingidos diretamente, pois estão massivamente em empregos com menores salários, e em funções que a mitigação de direitos viola normas de ordem pública, como supressão do intervalo intrajornada e trabalho intermitente, além de manter muitos potenciais trabalhadores na informalidade e sem qualquer amparo previdenciário. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, “em 2018, enquanto 34,6% das pessoas ocupadas de cor ou raça branca estavam em ocupações informais, entre as de cor ou raça preta ou parda esse percentual atingiu 47,3%. A maior informalidade entre as pessoas de cor ou raça preta ou parda é o padrão da série, mesmo em 2016, quando a proporção de ocupação informal atingiu seu mínimo. Nesse ano, havia 39,0% de pessoas ocupadas informalmente, sendo que, entre as pretas ou pardas, tal proporção atingiu 45,6%”.

Com o advento da pandemia da COVID-19, apesar da inconsistência e subnotificação de dados relativos ao número de óbitos e contaminados por cor e raça, comprovou-se que os negros foram o principal grupo vitimado. Em 28/08/2020, a Agência Brasil publicou que “quando observado o recorte de gênero e raça/cor ao mesmo tempo, a taxa de mortalidade padronizada de homens negros chega a 250 mortes a cada 100 mil habitantes, enquanto a taxa para brancos é de 157 mortes a cada 100 mil”.

Estamos na metade da Década dos Afrodescendentes, e por todo o ângulo que se observa, as disparidades entre brancos e negros no Brasil persistem. Medidas de inclusão, como ações afirmativas para o mercado de trabalho e ingresso em universidades, até possuem certa eficácia, mas se mostram incapazes de alterar a organização social mais complexa, profundamente sedimentada no racismo estrutural, que normaliza decisões políticas que têm ceifado a vida de homens, mulheres e crianças negras.

Não há como dizer que houve reconhecimento de acesso a saúde e educação, ou acesso igualitário à justiça e nem ao desenvolvimento contra a pobreza,  diante desta realidade em que os negros estão socialmente destinados à subalternidade, ou à morte.

Ao adotar o pacto da Década do Afrodescendente , mas manter inalterada a estrutura social racista, o Brasil tenta negar a existência de um Estado racista para a comunidade internacional, ao mesmo tempo em que a adoção formal desse pacto serve para tentar mitigar lutas antirracistas, porque cria a consciência (mentirosa) de que a estratificação racial é causada individualmente e não pela estrutura social. Condutas pessoais racistas são reflexo de uma sociedade estruturalmente racista em todas as áreas sociais, econômicas e jurídicas.

Os casos de racismo podem estar aumentando, ou algumas pessoas perderam a vergonha de expor o seu preconceito e discriminação, mas as transmissões e denúncias também aumentaram, e isso mostra que nunca houve passividade de nossa parte.

No livro Cartas da prisão de Nelson Mandela, na introdução, o seu neto afirma que durante os quase 30 anos em que o seu avô ficou injustamente preso, ele sempre tinha a convicção de que um futuro melhor estava por vir, sempre escrevendo “um dia havemos de…”. Não era apenas um desejo, mas o exercício de um projeto de Estado diferente, era uma forma de resistência em meio ao caos.

Então, como Nelson Mandela e Martin Luther King Jr., “eu tenho um sonho” de que podemos mudar essa realidade opressora e violenta.