Democracia em vertigem?

modernização do Estado brasileiro. Democracia em vertigem
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Este ensaio pretende analisar aquilo que não é dito no documentário Democracia em vertigem que acaba de ser lançado na Netflix. A psicanálise já demonstrou a importância do que não é dito. As mensagens do filme foram absorvidas, ousa-se agora lançar luz naquilo que se manifesta como ausência, silêncio da produção que apenas em dois momentos rompem a barreira imposta e aparecem como “latência”.

De uma afirmação para uma pergunta, o ponto de interrogação muda todo o significado da frase. Na interrogação parece morar uma ironia, mas não, o que há realmente é uma pergunta. A ‘nossa’ Democracia está em vertigem? Que isto significa? A hipótese é que o título demonstra um sintoma que deve ser remediado de alguma maneira. No entanto, este não é o principal problema, e sim o de que acaba descuidando da doença que deveras produz o sintoma.

Não é a ‘nossa’ democracia que está em vertigem, mas sim sua forma capitalista-liberal que está enfrentando mais uma de suas crises. Diante desta perspectiva é preciso levantar uma questão: Essa é a “nossa” democracia? Tal pergunta é trazida em decorrência da fala de uma das personagens do documentário que enquanto lava as escadas do palácio diz: “Na verdade, não existe democracia”. Que Democracia é essa em que o povo não se reconhece? Que governo do povo é esse?

A democracia liberal-burguesa não conseguiu (e está bem longe de conseguir) expressar a “vontade do povo”. Trata-se, antes, de um modelo de cogestão que reconhece certa possibilidade de influência do “povo”, com a condição de que os politicamente dominantes se submetam a eleições regulares, sem, porém, levar em conta apenas seu interesse[1].

É isso que chamamos de “nossa” democracia: um modelo de gerenciamento do Capital. Desta forma, a depender da acumulação capitalista, teremos um modelo “menos agressivo” como a democracia, em outros casos teremos modelos mais austeros. Aqui é visível porque uma “democracia” pode vir a ser um regime autoritário. Tão verdade isso que as instituições tidas como democráticas se mantém em um regime autoritário muita das vezes ou, inclusive, em um regime tido como democrático, no qual as mazelas autoritárias nascem e persistem. Por isso o povo não se reconhece e nem anteriormente se reconheceu, falta povo na democracia! E essa presença só ocorrerá em outra estrutura que não seja a capitalista.

E infelizmente hoje nossa maior utopia talvez seja a construção de uma greve, ou seja, nossa maior utopia é dentro do campo de possibilidades do capital. Não há luta efetiva para desbordar deste limite imposto, quando a esquerda-liberal aposta em um “sonho efêmero” de instituições garantidoras do Estado Democrático de Direito e com suas “narrativas” luta para crer que o passado era sonho e o presente-futuro virou pesadelo. Talvez essa “narrativa” se junte a uma das mais reacionárias da contemporaneidade. Todavia, a esperança se lança na fala de um do povo e talvez essa seja a quebra do “sonho” tão badalado na reverenciada esquerda-liberal para a “realidade”:  “O brasileiro, é o seguinte… que tinha uma oportunidade mínima…. o que acontece? A Dilma, o PT, deixava as migalhas pra nós. Agora não vai ter mais migalha”.

Acabaram as migalhas! Nossa luta hoje será para o retorno delas? Ou façamos diferente, tomemos todos os pães e também as máquinas de fazer os pães? Talvez isso para algumas pessoas não seja sonho daquele que escreve, mas sim delírio, entretanto, quando os defensores da realidade existente aparecem, olhai-vos sem as máscaras da ideologia e vão ver que essa realidade é irreal. Enquanto não houver um combate efetivo ao problema que cria sintomas, não sairemos dessas ilusões que de vez em quando ao despertar percebemos a catástrofe que estamos metidos. Já tentamos voltar a essas ilusões, isso não é mais possível.

E seguramente as medidas para salvar a democracia, mais de caráter cosmético, hoje em discussão no âmbito partidário e governamental produzirão pouco resultado. Empreender contra a divisão, o medo e a frustração deve significar se opor à estrutura econômica dominante e as relações de poder apoiadas nela[2].

Por fim, retoma a frase escrita por Max Horkheimer no texto “Os Judeus e a Europa”, da qual Hirsch também se utiliza no ensaio mencionado de que “(…) quien no quiera hablar de capitalismo debería calar también sobre el fascismo”[3].  Na temática de hoje esta frase diz respeito também a crise da democracia. Portanto, quem não quer falar do capitalismo deveria se calar também sobre a “crise da democracia”. Isto é, se não quereis extirpar a doença para que remediar os sintomas que continuarão a se manifestar?

Referências

Referências
1 HIRSCH, Joachim. Crise da democracia – qual crise? Margem esquerda: Revista da Boitempo. N° 32, 1° semestre, 2019.
2 Ibidem, p. 86.
3 Quem não quer falar do capitalismo deveria se calar também sobre o fascismo (tradução nossa).