No dia 12 de maio de 1980, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concedeu a legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) ao grupo encabeçado pela ex-deputada Ivete Vargas. A amiga e aliada do General Golbery do Couto e Silva serviu de testa de ferro da ditadura que, aproveitando o parentesco da ex-deputada com o Presidente Getúlio Vargas, articulou nos tribunais a retirada da sigla do seu herdeiro natural, Leonel Brizola, que já trabalhava há dois anos na reorganização do partido.
A cena de Brizola rasgando um papel escrito PTB e caindo em lágrimas comoveu muita gente pelo país que acompanhava a luta do ex-governador, o que inspirou o poeta Carlos Drummond de Andrade a registrá-la, alguns dias depois, em sua coluna no Jornal do Brasil:
“Vi um homem chorar porque lhe negam o direito de usar três letras do alfabeto para fins políticos. Vi uma mulher beber champanha porque lhe deram esse direito negado ao outro.
Vi um homem rasgar o papel em que estavam escritas as três letras, que ele tanto amava. Como já vi amantes rasgarem retratos de suas amadas, na impossibilidade de rasgarem as próprias amadas.
Vi homicídios que não se praticaram, mas que foram autênticos homicídios: o gesto no ar, sem consequência, testemunhava a intenção.
Vi o poder dos dedos. Mesmo sem puxar o gatilho, mesmo sem gatilho a puxar, eles consumaram a morte em pensamento.
Vi a paixão em todas as suas cores. Envolta em diferentes vestes, adornada de complementos distintos, era o mesmo núcleo desesperado, a carne viva.
E vi danças festejando a derrota do adversário, e cantos e fogos. Vi o sentido ambíguo de toda festa. Há sempre uma antifesta ao lado, que não se faz sentir, e dói para dentro.
A política, vi as impurezas da política recobrindo sua pureza teórica. Ou o contrário… Se ela é jogo, como pode ser pura… Se ela visa o bem geral, por que se nutre de combinações e até de fraudes.
Vi os discursos…”
Carlos Drummond de Andrade
(Publicado no Jornal do Brasil, 15/5/80 – Caderno B – Pág. 1)
Publicado no jornal A Cidade 27/ago/2005 p. 03
O PT e o cumprimento de sua missão histórica
Marcelo Botosso*
“A água se adequando ao terreno determina o seu curso. O estrategista se
adequando ao inimigo determina a vitória.” (Antigo provérbio chinês)
Nunca bater de frente quando se quer vencer. Matar a cobra com o seu
próprio veneno. Ir comendo pelas bordas. A milenar civilização chinesa há tempos
conhece estas práticas. Os protagonistas do regime autoritário instaurado no
Brasil a partir de 1964 aprenderam bem esta lição da China. Com a distensão
proposta por Geisel e a cúpula da ditadura, previa-se uma abertura política
“lenta, gradual e segura”. Foi assim com a lei de anistia, a lei partidária,
entre outras, e por fim a abertura seguríssima ocorrida em 1985 com a passagem
de um presidente militar para um presidente civil de confiança. Fechou-se assim,
ao menos simbolicamente, o período dos generais presidentes. Era preciso impedir
que os personagens de 1964 que foram cassados (e caçados), exilados e
amordaçados pela ditadura, voltassem ao poder. Comunistas, nacionalistas,
socialistas, democratas e sobre tudo os trabalhistas, estes ocupantes do poder
central no momento do Golpe de Estado, deveriam manter-se no ostracismo. Com a
redemocratização, a genericamente chamada “esquerda” deveria, se não totalmente
eliminada, ao menos, ficar sem fôlego no seu projeto de soberania popular de
país.
O general Golbery do Couto e Silva, um mentor do regime autoritário,
sabia bem disso. A geração pós-golpe, principalmente aquela forjada nas
movimentações 1968, seria parte do terreno fértil para os planos de calmaria e
continuísmo. Juntando-se a ela, os personagens do chamado “novo sindicalismo”,
aqueles que outrora fizeram carreira atacando a CLT (Consolidação das Leis do
Trabalho), tida por estes últimos como fascista, engrossariam o caldo
consolidando os planos do regime agonizante. Nem antigos e combatentes
sindicalistas foram poupados pelos “novos” que os intitularam pejorativamente de
pelegos. Alguns “novos” até bem intencionados, mas com a visão demasiadamente
estreita, tornaram-se instrumentos úteis ao divisionismo e a dominação. Claro
que os bem-intencionados hoje caíram no esquecimento e não ocupam o lugar de
destaque no cenário político nacional, muito menos na mídia, via corrupção,
jeton, caixa dois, mensalão e outras formas espúrias de se angariar bens,
vantagens, prestígios, privilégios e, acima de tudo, poder.
Do ponto de vista do continuísmo dominante, ou seja, das
“conquistas” pós 1964 era preciso neutralizar e até mesmo destruir o principal
símbolo, o PTB, que resgataria as lutas sociais do pré-golpe. E como foram
competentes! Esse episódio mereceu ser eternizado por Drummond no poema que
necessariamente transcrevemos abaixo. É a sensibilidade do poeta no auxílio da
compreensão histórica. Observe no poema que o líder trabalhista rasga o antigo
para em seguida cria o novo.
Seguindo o pensamento chinês de não oferecer resistência para se
conseguir a vitória, o poder instituído desde 1964 estimulou, arquitetou e
promoveu a criação (ou a pulverização) partidária. As reuniões secretas de
representantes do então governo da época com destacados líderes sindicais, hoje
reveladas ao público, denotam isso. Foi preciso do ponto de vista estratégico do
regime autoritário criar o lobo em pele de cordeiro, não bater de frente no
inimigo, só assim a abertura contemplaria a sua meta, mais uma vez leia-se
“lenta, gradual e segura” e, pior, com conseqüências incalculáveis para o campo
da luta e das conquistas populares.
Uma vez criado o lobo disfarçado e inserido-o em meio ao rebanho de
forças político-sociais populares, a missão certamente teria êxito: neutralizar
àqueles que foram alijados do poder pelo golpe de 1964 e que representavam o
projeto nacional trabalhista de país iniciado, fundamentalmente, a partir da
chamada Revolução de 1930. A vitória eleitoral do cassador de marajás elucida
isso.
Atualmente os trabalhistas mal conseguem se organizarem devidamente
em seu partido, o PDT de Brizola. Parece que nunca a frase do antropólogo Darcy
Ribeiro ficou tão clara como nos dias de hoje: “O PT é a esquerda que a direita
aplaude”. Missão cumprida?
*Professor e historiador
marcelo_botosso@…
Eu vi
Carlos Drummond de Andrade
(Jornal do Brasil, 15/05/1980 – Cad. B – Pg. 1)
“Vi um homem chorar porque lhe negaram o direito de usar três letras do alfabeto
para fins políticos. Vi uma mulher beber champanha porque lhe deram esse direito
negado ao outro. Vi um homem rasgar o papel em que estavam escritas as três
letras, que ele tanto amava. Como já vi amantes rasgarem retratos de suas
amadas, na impossibilidade de rasgarem as próprias amadas.
Vi homicídios que não se praticaram mas que foram autênticos homicídios: o gesto
no ar, sem conseqüência, testemunhava a intenção. Vi o poder dos dedos. Mesmo
sem puxar gatilho, mesmo sem gatilho a puxar, eles consumaram a morte em
pensamento.
Vi a paixão e todas as suas cores. Envolta em diferentes vestes, adornada de
complementos distintos, era o mesmo núcleo desesperado, a carne viva; E vi
danças festejando a derrota do adversário, e cantos e fogos. Vi o sentido
ambíguo de toda festa. Há sempre uma antifesta ao lado, que não se faz sentir, e
dói para dentro.
A política, vi as impurezas da política recobrindo sua pureza teórica. Ou o
contrário… Se ela é jogo, como pode ser pura… Se ela visa o bem geral,
porque se nutre de combinações e até de fraudes? Vi os discursos…”