O feminismo e a instrumentalização neoliberal

CIBELE LAURA: O feminismo e a instrumentalização neoliberal
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Em 1973, surgiu nos Estados Unidos a ONG chamada Society of Internacional Development. Essa ONG, instituição de grande porte, cunhou o termo Women in Development. Deste termo surgiu toda uma literatura sobre o feminismo liberal abarcada por instituições tentáculos dos EUA, como a ONU, a USAID e o Banco Mundial. A ONG Society of Internacional Development foi a responsável pela introdução da narrativa do feminismo burguês branco neoliberal nos países do terceiro mundo através da USAID, a agência estadunidense de desenvolvimento internacional. O Banco Mundial, convidado, em 1975, para participar da primeira Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas, na Cidade do México, também começou a desenvolver portifólio de publicações sobre “Women in Development”. A partir da IV Conferência Mundial da Mulher, realizada pela ONU, em Pequim, em 1995, os termos “Equidade de Gênero” e “Empoderamento Feminino” começaram a se cristalizar cada vez mais. Em 2012, o Banco Mundial produziu em seu documento anual mais importante, o Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial – RDM – publicação sobre “Equidade de Gênero e Desenvolvimento”. No mesmo ano, a USAID também teve produção de substancial conteúdo a respeito, o título era “Políticas de Equidade de Gênero e Empoderamento Feminino”. Estas se tornaram palavras-chave – não à toa – do feminismo identitário após a instrumentalização feita pelas instituições tentáculos dos EUA. O feminismo, dentro do arcabouço identitário, se tornou uma luta inserida na lógica do neoliberalismo social.

O artigo “Transversalização da perspectiva de gênero ou instrumentalização das mulheres?”, da Revista Estudos Feministas, assinado por Marie France Labrecque, da Université Laval, expõe parte do cooptação da narrativa feminista à adaptação neoliberal:

“Para mim, como também para várias outras autoras, o contexto de surgimento da transversalização do gênero é aquele do Consenso de Washington que corresponde a uma série de programas inspirados nas abordagens de Milton Friedman e dos Chicago Boys, com o objetivo de fazer com que o Estado deixe pleno espaço ao mercado. O Consenso de Washington concretizou-se nos programas de ajuste estrutural que foram emitidos no começo dos anos 1980, enquanto a crise da dívida internacional estava no auge. Os dois atores principais do Consenso foram o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Enquanto o FMI almejava o resgate do equilíbrio financeiro, ao Banco atribuía-se a missão de converter os países em desenvolvimento à doutrina do liberalismo econômico, que acompanharia a diminuição do Estado e a conversão geral à competição econômica global. E o que acontecia com as mulheres nesse contexto?

A história havia começado bem para as mulheres, já que o Banco Mundial, de alguma forma, as tinha ‘descoberto’, nos meados dos anos 1970, em decorrência da Conferência Internacional da Mulher na Cidade do México, em 1975, organizada pelas Nações Unidas. Em seguida, a declaração da Década Internacional das Mulheres – 1975-1985 – contribuiria para tornar as mulheres mais visíveis, principalmente na área do desenvolvimento, o que se manifestou na prática na formulação de políticas, programas e projetos para as mulheres por diferentes entidades e, particularmente, pelas agências internacionais de desenvolvimento.”

Qual o propósito que se seguiu a escola liberal “Women in Development”? A inserção da mulher na lógica de mercado neoliberal, no mercado de trabalho dos países subdesenvolvidos, sem responder de fato a desigualdade de gênero e corrigir a injustiça social a que a mulher está submetida. Para essa literatura, difundida pelas instituições tentáculos do imperialismo, a globalização, a liberalização do mercado e a difusão tecnológica dariam jeito na questão da desigualdade de gênero nos países subdesenvolvidos, porém nunca olhou para a mulher do terceiro mundo dentro da realidade colonial e do contexto de classes. Hoje, os movimentos feministas identitários se mitigam com a visibilidade do mercado à diversidade e o empoderamento feminino nada mais se tornou na lógica da mulher enquanto consumidora.

Algo similar ao aplicado nos EUA, no início laboratorial do uso da equidade de gênero para os fins da economia capitalista: Em abril de 1929, ainda havia na sociedade estadunidense o tabu contra as mulheres fumantes e isso resultava num óbice para a indústria de tabaco. George Hill, presidente da Corporação Americana de Tabaco, foi um dos primeiros clientes de Edward Louis Bernays – pioneiro no campo das relações públicas e da propaganda, referenciado como “pai das relações públicas”, era também sobrinho de Sigmund Freud. George Hill contratou os serviços de Bernays com a finalidade de superação do tabu moral que impedia a mulher fumar publicamente assim como os homens faziam.

Bernays, através da perspectiva da psicanálise, associou os cigarros à ideia de desafiar o poder masculino: as mulheres iriam fumar porque elas teriam o próprio pênis! Com base nisso e como pano de fundo a luta contra o machismo, Bernays armou cenário no evento anual da Páscoa, em Nova Iorque. Ele convenceu um grupo de ricas debutantes a esconder cigarros sob as roupas. Elas deveriam então se juntar à parada e, ao seu termino, acenderiam os cigarros teatralmente. Bernays então informou à imprensa ter “ouvido falar” de um grupo de sufragistas que preparavam protesto durante o evento. O slogan do protesto foi “TOCHAS DA LIBERDADE”. Com a presença de formadores de opinião pública, o simbólico slogan, as mulheres jovens, debutantes, empoderadas, desafiadoras, fumando cigarros em público, teve a visibilidade necessária à luta por igualdade e liberdade associada ao signo estadunidense da estátua da liberdade, causando reação empática ao protesto por parte da sociedade.

No dia seguinte, todo o teatro não só estava em todos os jornais de Nova Iorque, mas também em todos os Estados Unidos e no resto do mundo. Doravante, a venda de cigarro para as mulheres começou a crescer. Foi uma conquista feminista fumar em público. Bernays tornou a mulher fumante socialmente aceita com um simples ato simbólico. O que criou foi a ideia de que, se uma mulher fumasse, se tornaria poderosa e independente.

Para o terceiro mundo, o laboratório do socialmente aceito e inclusão ao mercado consumidor foram anexos à ideia de conquista social pela lógica de mercado que não corrige, e nem pretende corrigir, a inserção da mulher na sociedade patriarcal dos países subdesenvolvidos. Um dos exemplos mais flagrantes é a inserção da mulher no mercado de trabalho dentro da precariedade deste mercado nos países subdesenvolvidos, omisso a buscar resposta a condição da mulher trabalhadora, a verdadeira desigualdade de gênero, a dupla jornada feminina e etc.

O feminismo burguês branco é o empreendido na literatura Women in Development e nas questões de gênero à mulher do terceiro mundo, nunca pretendeu resolver a condição desigual da mulher, somente é mais uma farsa ideológica da política externa dos EUA, obstando a percepção da nossa realidade colonial, amortecendo os impactos da luta de classes, cuja mulher é exposta com maior vulnerabilidade ao neocolonialismo.

A engenharia social neoliberal empreendida a partir das lutas sociais, a que o identitarismo se destina, estão adaptadas à manutenção do sistema colonizador do terceiro mundo. Sob falsa tintura ideológica esquerdista da New Left (a nova esquerda, apelidada de Exquerda Fashion Week, por mim), a engenharia social neoliberal amortece propositalmente os impactos destruidores causados pelo próprio neoliberalismo. O Banco Mundial, grande mentor da engenharia social, explicita, eventualmente e sutilmente em seus informes, o método de controle das sociedades terceiro mundistas, ao destacar que as políticas de inclusão são fundamentais para aumentar a coesão da sociedade e evitar protestos e descontentamento social.

O neoliberalismo começou a superar o modelo de Estado de bem estar social não somente do ponto de vista político e econômico, mas comportamental junto às modificações da sociedade estadunidense na esteira da contracultura da década de 60, que também inspirou as lutas sociais, como O Coletivo Combahee River, organização negra feminista ativa em Boston de 1974 a 1980, e o nascimento da ONG Society of Internacional Development, seguindo toda literatura Women in Development em pautas feministas pulverizadas no terceiro mundo pela USAID, Banco Mundial, fundações/Ongs…

No livro “A nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal” os autores Pierre Dardot e Christian Laval fazem a constatação de como o neoliberalismo se encontrou às lutas sociais da época.

“…a crise dos anos 1960-1970 não era redutível a uma “crise econômica” no sentido clássico. Nesses termos, ela é estreita demais para captar a extensão das transformações sociais, culturais e subjetivas introduzidas pela difusão das normas neoliberais em toda a sociedade. Porque o neoliberalismo não é apenas uma resposta a uma crise de acumulação, ele é uma resposta a uma crise de governamentalidade. É, na verdade, nesse contexto muito específico de contestação generalizada que Foucault situa o advento de uma nova maneira de conduzir os indivíduos que pretende satisfazer a aspiração de liberdade em todos os domínios, tanto sexual e cultural como econômico. Para resumirmos, ele teve a intuição de que o que se decidia naqueles anos era uma crise aguda das formas até então dominantes de poder. Compreendeu, contra o economicismo, que não se podem isolar as lutas dos trabalhadores das lutas das mulheres, dos estudantes, dos artistas e dos doentes, e pressentiu que a reformulação dos modos de governo dos indivíduos nos diversos setores da sociedade e as respostas dadas às lutas sociais e culturais estavam encontrando, com o neoliberalismo, uma possível coerência teórica e prática”.

O empoderamento feminino está dentro da lógica de desenvolvimento dependente – teórica e prática – da engenharia social neoliberal destinada aos países subdesenvolvidos, orientado pelo Banco Mundial, USAID, Fundações internacionais/nacionais e outros tentáculos do Imperialismo, imerso, obviamente, na máxima capitalista de consumo, arrastando o feminismo para o caminho de um pensamento que não supera a misoginia, só afaga o ego feminino escoriado pelo machismo estrutural. Uma solução cosmética, cheia de veleidades e nenhum objetivo libertador socialmente, difundida por lideranças feministas na vida política, ativista e artística.

No site da Open Society, fundação do bilionário George Soros, pode-se encontrar o apoio deliberado à luta feminista e formação de lideranças.

Fomentando a próxima geração de líderes feministas da América Latina

‘Os programas Youth Exchange e Women’s Rights da “Open Society Foundation” irá premiar jovens líderes feministas com bolsas de estudos à jovens dinamicos dedicados ao futuro do feminismo na América Latina’

A Fundação Ford, a Open Society Foundations e o Instituto Ibirapitanga anunciaram, após o assassinato da vereadora Marielle Franco, a criação de um fundo para incentivar e apoiar as mulheres negras que aspiram liderança política no Brasil, uma espécie de financiamento de líderes feministas de comunidades carentes. Com que intuito?

A Open Society tem papel relevante na engenharia social neoliberal. O Jornalista estadunidense William Engdahl, em entrevista a Ludwig Watzal, sobre o imperialismo dos EUA, a CIA e as ONGs, denunciou:

“Durante a presidência de Ronald Reagan vieram a público lamentáveis escândalos relativos a sórdidas operações da CIA pelo mundo fora. Chile, Irão, Guatemala, o projecto top secret MK-Ultra, o movimento estudantil durante a guerra do Vietnam, para não referir senão alguns. De forma a deixar de se encontrar na ribalta, o Diretor da CIA, Bill Casey, propôs a Reagan a criação de uma ONG “privada”. Ligeiramente à margem, ela pretendia-se privada mas na realidade estava ali para, como disse um dos seus criadores, o falecido Allen Weinstein numa última entrevista ao Washington Post: ‘fazer o que a CIA faz, mas de forma privada’. Foi a criação, em 1983, da ONG denominada: “National Endowment for Democracy [Dotação Nacional para a Democracia]. Pouco tempo depois, dirigidas a partir de Washington, outras ONG surgiram, tais como “The Freedom House” ou as de Soros, as “Open Society Foundations”, “Instituto para a paz” e outras ainda. Os fundos eram frequentemente encaminhados pelo Departamento de Estado via USAID para ocultar a sua proveniência.”

O feminismo internacionalista, articulado por instituições tentáculos dos EUA, é um instrumento do neoliberalismo, uma forma de controle de mentes dentro da Guerra Híbrida.

Ao encontro do exposto aqui, Joana A. Coutinho, no livro “ONGs e Políticas Neoliberais”, viu nas ONGs os sujeitos privilegiados dos governos na implementação de políticas estatais. Escreveu que o entrelaçamento político, econômico e ideológico do processo garantiu o terceiro setor assumir a condição de principais agentes da implementação das políticas neoliberais na década de 1990, no Brasil. As ONGs, com seu aspecto não governamental e sem fins lucrativos, se revelam extremamente funcionais para massificação e materialização da intervenção estatal de caráter neoliberal ao ocultar a mercantilização e a ruptura com o padrão universalista das políticas públicas.

Ciente do mecanismo de instrumentalização, chego à conclusão que o feminismo, desprovido de nacionalismo, é apenas um instrumento da guerra ideológica neoliberal a assolar o terceiro mundo.

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