O fetiche de passar o Brasil a limpo pelo combate à corrupção – 7

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Tubulações de óleo jorrando dinheiro em imagem de fundo do Jornal Nacional e “fakenews’ com fotos, áudios e filmes engenhosos espalhados nas redes sociais. A plasticidade tem sido a quintessência da semiótica golpista para disseminar o fetiche maior da política na atualidade – qual seja, o combate à corrupção. A ilusão infantil de passar o Brasil a limpo tem neutralizado a capacidade de reflexão de muitos brasileiros numa situação em que iletrados despudorados defendem o indefensável na maior cara de pau.

Jessé de Souza vem mostrando essa dissonância cognitiva em seus trabalhos desde o golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016, com seu brilhante livro “A tolice da inteligência brasileira”. O fetiche contempla algo mais complexo na cambulhada brasileira: a ideia de que onde há estado há corrupção, e, sendo estado, há políticos e, por isso, políticos são potencialmente corruptos até prova em contrário.

Bom lembrar e repetir sempre que a Lava Jato, com seu marketing pirotécnico, segundo o qual críticos de suas ações seriam corruptos ou lenientes com a corrupção, tem sido grande responsável pelo embotamento da inteligência de pessoas de todas as classes sociais e de diferentes profissões e graduações acadêmicas.

Sua cortina de fumaça, conforme mostrou Jessé de Souza, embaça a paisagem da grande corrupção intocada – isto é, a dos mecanismos rentistas, a evasão de divisas, as dívidas trabalhistas e previdenciárias e outras situações que totalizam cifras muito mais astronômicas do que o que foi recuperado no combate à corrupção.

O fetiche foi se incrustando na cabeça de muitos brasileiros antes da Lava Jato, a partir do que ficou conhecido como “mensalão”, em 2006. Ou seja, há 13 anos o Brasil tem apenas uma pauta preponderante em sua agenda – que é o combate à corrupção. E assim boa parte da classe média que bateu panela contra Dilma Rousseff dorme tranquila por não fazer parte da corrupção, embora agindo como marionete das forças que mantêm a grande corrupção. Pensando num período de tempo tão longo como esse (2006 a 2019), não há como esquecer Getúlio Vargas, que, em 15 anos, realizou profundas transformações no país e, tendo sido vítima do mesmo fetiche, foi deposto, porém reconduzido ao governo cinco anos depois para continuar os programas de políticas públicas visando ao desenvolvimento nacional.

Sempre bom lembrar também que, de 1930 a 1980, o Brasil foi um dos países com maior crescimento do mundo, superando a China no período. Outra referência importante vem dos Estados Unidos: os três meses iniciais do governo de Franklin Roosevelt nos Estados Unidos com o famoso New Deal, algo, obviamente, que transforma nem vexame internacional os oito meses do atual governo brasileiro. Aliás, diga-se de passagem, que nos Estados Unidos empresários corruptos também são punidos, como aqui, porém lá o governo faz de tudo para as empresas não quebrarem.

Os exemplos são diversos mundo afora, cabendo nesse ponto a sugestão de dois livros: “Chutando a escada”, de  Ha-Joon Chang, e “A insubordinação fundadora: breve história da construção do poder pelas nações”, do argentino Marcelo Gullo. Chutando a escada no sentido de que os que subiram tiraram depois, ou simultaneamente, o acesso dos demais a níveis de desenvolvimento alcançados pelos que ascenderam. Insubordinação no sentido de não se submeter a interesses dos outros mais poderosos a fim de fundar uma nação verdadeira através do desenvolvimento.

As contradições e revelações que vieram à tona no episódio da Vaza-Jato evidenciam os interesses em jogo e quem está saindo perdendo no tabuleiro de xadrez geopolítico. Nesse sentido, o fetiche disseminou também a ideia de que reflexões sobre a imbricação das relações internacionais na questão da Lava Jato seria fruto de paranoia conspiratória. E assim convenceu os ingênuos e tolos de que o problema do Brasil é uma questão “gerencial” e de honestidade, isto é, problema de incompetência e corrupção.

No caso da Lava Jato, talvez seja sofisticado demais para alguns procuradores tentar compreender que desenvolvimento não vem depois de subdesenvolvimento. Mas sim que ambos fazem parte do mesmo fenômeno da divisão internacional do trabalho da expansão capitalista desde o início da modernidade.

Para os comuns mortais e bem intencionados, na ausência de informação e poder de abstração, compreensível a tendência de tomar posição pensando mais por imagens prontas (que faz com que o sujeito não exercite a sua imaginação) do que por palavras na engrenagem semiótica dos golpistas. Afinal, comum ouvir: não manda texto longo, que ninguém lê.

Entretanto, o Brasil só vai realmente conseguir se passar a limpo com desenvolvimento e educação – e não com pirotecnia midiática que faz permanecer os privilégios do um por cento mais rico e a precariedade da maioria da população. Em relação aos corruptos, sim, precisamos combatê-los sempre. Porém, mais fácil mudar as instituições do que o ser humano. A mordida da maçã por Adão e Eva resultou nessa capacidade de ser versado no bem e no mal. Mas, assim mesmo, golpistas insistem em purificar homens e mulheres e o estado brasileiro, mesmo que seja praticando a mesma corrupção que combatem.

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