O fetiche do jornalismo sem emoção que não usa adjetivos – 10

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O escândalo da Vaza-Jato é também o escândalo do jornalismo brasileiro. Entretanto, não se resume a revelações novas de questões éticas ou de interesses escusos de jornalistas e donos de empresas midiáticas. Aqui continuamos a série de fetiches sociais para se pensar políticas públicas, no caso, a mistificação do jornalismo pretensamente isento.

Trata-se de uma crise, se é que se pode chamar de crise a sua transformação como resultado do desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação. Este processo, por sua vez, se é que se pode chamar desenvolvimento a crise do próprio capitalismo.

O jornalismo que se pretende objetivo e sem emoção é o jornalismo instrumental, que preza mais o substantivo em suas asserções pretensamente como “espelho da realidade” do que o adjetivo ou a hipérbole da indignação e interpretação assumida. É o jornalismo partidário e hipócrita, travestido de “neutro” e pretensamente representante da opinião pública consensual.

A maior parte dos profissionais – do repórter “de rua” ao editor-executivo ou diretor de redação – assume os elementos ditos “jornalísticos” de forma muitas vezes até inconsciente, outras vezes de forma deliberada, como conformação inevitável de uma profissão enquadrada nos moldes capitalistas de ser jornalismo-mercadoria – fazendo da notícia mercadoria como outra qualquer.

A contradição é justamente o dilema de se fazer algo que não parece uma mercadoria, mas funciona como tal numa complexa teia de relações em que os meios de comunicação estão interpenetrados às instituições diversas. Isto é, os meios como parte do próprio estado, o estado ampliado, para falar em termos gramscianos.

Daí que sua instrumentalidade supostamente objetiva, que escamoteia suas tomadas de posições partidárias, tem que ser feita na base da frieza, sem qualquer emoção, adjetivos ou predicativos que revelem seus interesses. Assim, só articulistas ou colaboradores podem emitir opiniões – repórteres, nunca.

A própria seção “editorial” dos veículos, isto é, o setor destinado à opinião dos “donos” da empresa jornalística, ou de seus amigos, é feita com base em emissões frias e “objetivas” de pareceres e análises, em tom supostamente científico. Isso, tendo como referências as matérias jornalísticas publicadas pelo próprio veículo e transformadas em fontes de veracidade dessa ou daquela situação. Não à toa, políticos, promotores e policiais usarem reportagens publicadas como supostas provas de fatos e denúncias contra adversários e/ou suspeitos de crimes.

É nesse sentido que o The Intercept Brasil causa muito desconforto entre esses meios tradicionais por conta de seu tom interpretativo acompanhado de reportagem. Isto é, contar o que aconteceu já com análises, interpretações e conclusões.

Repórter algum dos meios hegemônicos tem autorização para “fazer” interpretações. O jornalismo interpretativo do The Intercept supera inclusive o tal jornalismo investigativo, que surgiu com uma aura “revolucionária” e elitista, isto é, para furar o bloqueio do mero jornalismo “declaratório” de autoridades – aquele baseado na apuração a partir de dados oficiais e de “fatos” tornados verdadeiros do dia a dia.

Aliás, estranho jornalismo investigativo esse em que profissionais com certo renome posam ao lado dos donos dos jornais, em peças publicitárias de página dupla, do tipo personagens que “fazem diferença”, como já se verificou em algumas ocasiões. Ou seja, jornalismo investigativo patrocinado pelos próprios donos dos meios tradicionais? Nada contra, ótimo. Mas fica a indagação: investigativo do quê, então? Investigativo em sociedade com a Lava-Jato?

No caso da interdição de interpretações críticas por parte dos repórteres dos grandes meios hegemônicos, isso acontece para que as análises críticas fiquem sob a tutela exclusiva dos articulistas de confiança dos donos das empresas. Agora, vemos por que muitos desses articulistas estão sendo colocados à prova de autocríticas – muitos em becos sem saída – ou tentativas vexatórias de saída pela tangente com desculpas esfarrapadas.

Mas, a crise não foi inaugurada pelo The Intercept Brasil. Na verdade, ela resulta de um novo ambiente comunicacional no qual profissionais têm seus blogs, outros escrevem simultaneamente para dois ou três sites, outros fazem parte de diferentes plataformas e por aí vai. Ou seja, a produção de notícias não é mais atributo exclusivo dos grandes meios de comunicação tradicionais.

Quando era jovem repórter em meados da década de 1980, lembro agora que, por conta da carga horária de cinco horas de trabalho, jornalistas trabalhavam de manhã para o jornal O DIA e, à tarde, para o jornal O GLOBO. Com mudanças diversas oriundas do processo capitalista, os jornais extinguiram a carga horária de cinco horas, instituindo como referência o piso salarial de sete horas diárias, que, obviamente, se transformavam em dez, doze horas, como ainda acontece nos dias atuais.

O mais importante, entretanto, é o conjunto de transformações desse ambiente de novas tecnologias de informação e comunicação. Obviamente, seu desenvolvimento não é separado das contradições e crises do modo de produção capitalista. Enfim, desconfiemos do jornalismo muito frio, que se apresenta como isento e objetivo e que classifica como suspeito o uso de adjetivos. Nunca foi isento e nunca será. Não existe jornalismo objetivo.

Todo jornalismo informativo tem que ser interpretativo e opinativo. É um fetiche acreditar no contrário. A propósito, recordo aqui o interessante trabalho de Ana Paula Goulart Ribeiro, que é o seu livro “Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 50” (Rio de Janeiro: E-papers, 2007). Pela pesquisa da autora, podemos entender que o que vivemos agora, em termos de crises, revelações, surpresas, escândalos, têm que ser compreendido de forma historicamente diacrônica, sobretudo, a partir das mudanças ocorridas no jornalismo na década de 1950.

Segundo ela, as reformas daqueles anos, foram um marco da imprensa brasileira, “que assinala a passagem do jornalismo político-literário para o jornalismo informativo.” (p. 28). Acrescenta a autora que a imprensa “abandonou definitivamente a tradição opinativa que, desde 1821 a havia tão profundamente marcado. Esse modelo foi gradualmente substituído por um jornalismo que privilegiava a informação ‘objetiva’, separada editorial e graficamente do comentário pessoal.” (p. 28)

O jornais deixam assim de lado a disposição opinativa e assumem seu caráter de representação isenta da opinião pública, isto é, fazendo jornalismo como suposto retrato “fiel” da realidade. De acordo com ela, “se, antes, o jornalismo havia sido o lugar do comentário sobre as questões sociais, da polêmica de ideias, das críticas mundanas e da produção literária, agora, ele passava a ser o ‘espelho’ da realidade.” (p. 30).

Era, enfim, a americanização do jornalismo brasileiro como parte do seu processo de submissão colonialista à potência hegemônica do pós-guerra. De lá para cá, com poucas exceções, repórteres passaram a ser operários reificados da notícia, esta como “espelho da realidade”, e eles como sócios sem saber de interesses antinacionais.

A Vaza Jato confirma que a tragédia do jornalismo brasileiro é mais complexa do que supostos erros de ótica e de interpretação de profissionais isolados ou de interesses conjunturais e eleitorais de donos dos meios de comunicação. Jornalistas em geral foram amaciados pelo rolo compressor da ideologia imperialista. Imaginaram estar passando o Brasil a limpo com furos jornalísticos baseados em vazamentos da Lava-Jato – agora desmascarada.

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