O fetichismo dos fatos e imagens como espelho da realidade – 6

O fetichismo dos fatos e imagens como espelho da realidade 6
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Umberto Eco tinha certa razão ao afirmar que a internet possibilitou voz e pretensa liberdade de opinião a uma multidão de imbecis. Por outro lado, inegável o potencial democrático da disseminação de informações oferecido pelas tecnologias de comunicação e as redes sociais. Entretanto, um fenômeno simples e, ao mesmo tempo, complexo, tem a ver com a diferença entre conhecimento e compreensão dos fatos. Trata-se do descompasso entre essência e aparência. A nossa máquina de guerra contra os fetiches sociais traz hoje o verbete compreensão dos fenômenos, isto é, contra a ideia de que os fatos e suas imagens falam por si sós nessa velocidade da vida contemporânea.

Diferença aparentemente óbvia, mas nem tanto, entre tomar conhecimento dos fatos pelas redes sociais ou pela televisão e compreendê-los efetivamente. Mesmo que também por esses meios, claro, se possa compreendê-los e não só recebê-los de maneira irrefletida. Porém, aqueles que imaginam “conhecer” e “compreender” a vida e o mundo somente pela televisão e por flashes instantâneos das redes sociais estão simplesmente (e literalmente) roubados. E isso vale não só para os que possuem menos recursos, mas para qualquer indivíduo de extratos sociais ou de categorias profissionais diferentes.

Pessoas de setores da nossa classe média, por exemplo, costumam “relaxar” diante do Jornal Nacional e da novela e se consideram antenados em relação à vida e ao mundo por conta de seus conhecimentos, seus “gadgats” de última geração e suas viagens ao exterior. Porém, muitas vezes, não conseguem compreender sua posição de classe, muito menos a conexão entre os fatos do presente, confundindo causas com efeitos, substituindo o todo pelas partes. Sem falar da falta de memória histórica que alimenta a crença do presente perpétuo do sistema social supostamente imutável contraditoriamente veloz e mutante a toda hora. Não à toa seu fetiche pelos Estados Unidos, qual seja, seu modelo ideal e supremo de vida em sociedade.

A verdade é que a compreensão dos fenômenos não se reduz a um procedimento técnico de “acesso” ao conhecimento supostamente pronto em algum lugar à espera de ser alcançado. Mas sim faz parte de um processo conflituoso da construção dessa compreensão na vida cotidiana das pessoas. Conseguimos compreender determinados fenômenos, mas não conseguimos compreender outros – situação que acontece com todos nós em relação a diferentes dimensões da vida. Ao mesmo tempo em que temos a sensação de mudança veloz e constante, não percebemos as limitações de possibilidades de compreensão de nossa condição. Um mundo que muda toda hora e não sai do lugar não sabemos por quê. Não conseguimos compreender por que estamos simultaneamente no século XIX e XXI.

O desafio talvez seja na escolha do que queremos e do que temos condições de compreender. Querer compreender é um ato político. Assim como o nosso olhar também é um ato político, no sentido de como e para onde o direcionamos. Nosso olhar compromete-se ou não diante do real. Isso porque, sendo um dos elementos determinantes de classe social, a compreensão, como disse, é um processo social conflitivo em que interagem atores em posições diversas. Não se trata de graus de inteligência inata ou especial de uns em relação a outros. Mas sim, dentre outras coisas, de um fazer imperceptível de construção ideológica que se instala no inconsciente dos indivíduos. O sujeito pensa que sabe, mas não sabe e nem imagina o que ignora.

Podemos indagar, por exemplo, o que esperar da compreensão dos fatos por parte das pessoas que assistem ao programa televisivo do Ratinho ou do Datena todos os dias? Como esperar que telespectadores compreendam a realidade do país através do noticiário da TV Globo ou da TV Record? Que tipo de compreensão pode-se esperar das pessoas que vivem recebendo e repassando pelo whatsApp imagens, falsas ou verdadeiras, de fatos violentos ou de qualquer situação absurda sem nexo direto com suas vidas?

Saindo da empiria mais pedestre do cotidiano comum, que tipo de compreensão da política, da democracia e do próprio Direito pode-se esperar de estudantes dessa área que só leem e foram adestrados para decorar leis e regras positivadas em diferentes códigos? Que, dessa forma, na maioria das vezes, não conseguem fazer conexões entre democracia, estado, política e economia. Que tipo de compreensão sobre desenvolvimento e soberania pode-se esperar de determinados servidores públicos concursados que passaram anos metidos em cursinhos técnicos preparatórios para decorar leis, normas, proposições ou dogmas e fórmulas de suas respectivas disciplinas, sem uma amplitude maior dos diversos tipos de conhecimento?

Essas são apenas algumas indagações entre outras sem a pretensão de esgotar o tema. Por ora, há que se enfatizar que a compreensão dos fatos e dos fenômenos não é uma dádiva ou uma exclusividade dos doutos do saber científico de qualquer disciplina. Até porque existem diferentes espaços de saber numa sociedade, embora sendo a Academia, nos seus diferentes níveis, o espaço científico por excelência. Espaço esse voltado tanto para a formação de pesquisadores, como para a própria formação e desenvolvimento do pensamento e da ciência (incluindo, claro, a produção de pesquisas), como também para a formação de futuros profissionais liberais e dos eventuais possíveis líderes da sociedade e dos operadores das instituições políticas e burocracias do chamado estado democrático de direito.

Entretanto, produção de saberes ocorre também em outras arenas, além das escolas e universidades, como nos aparelhos administrativos do estado, nas associações da chamada sociedade civil, sindicatos, empresas, partidos políticos, clubes, entidades comunitárias, religiosas e outras. Saberes, mesmo que não sejam científicos stricto sensu. A diferença com a universidade, como o próprio nome diz, é justamente esta última oferecendo a amplitude do conhecimento e compreensão dos fatos e dos fenômenos naturais e sociais pelos diversos campos do saber científico.

O requisito inerente dessa amplitude é a necessária e indispensável prática do espírito livre e crítico, daí o ataque de forças obscurantistas às universidades. Sem liberdade, criatividade e espírito crítico não há conhecimento, nem compreensão dos fenômenos, muito menos produção de ciência. Se algum membro do governo ler aquele livrinho clássico do Max Weber, “Ciência e política: duas vocações” (Cultrix), pode até tentar espremer de suas entrelinhas, por exemplo, uma justificativa para a ideologia boçal da “escola sem partido” – mas, obviamente, fazendo uma leitura deturpada.

Isso porque, apesar de certo dogmatismo weberiano, dessa leiturinha obrigatória para qualquer mestrando (mestrando verdadeiro, e não falsários que fetichizam Harvard), depreende-se que ciência é uma coisa e política é outra, inevitavelmente, porém, uma repercutindo na outra. Quem se dedica à ciência chega a situações com consequências políticas e quem faz política sabe da importância da pesquisa científica e como a política é condição para o desenvolvimento da ciência. Na sala de aula não existe neutralidade porque ciência alguma nunca foi neutra, nem aqui, no Brasil, ou nos Estados Unidos, nem na China de agora, nem em Atenas do século V antes de Cristo.
A verdade é que não sabemos pensar tudo na vida. Toda hora precisamos aprender e reaprender a pensar. Nossa capacidade “inata” do pensamento não nos habilita a pensar, de prontidão, qualquer tema. Para pensar, há que se aprender e treinar o pensamento constantemente. Os verdadeiros cientistas não param de estudar e pesquisar porque sabem que nunca sabem e nunca saberão tudo.

Entretanto, não precisa ser cientista para entender que aprender a pensar exige espécie de “musculação” do pensamento e do olhar, e isso só acontece na prática de vida da pessoa em seu cotidiano. Em outras palavras, exige treinamento permanente, não precisando, para isso, porém, ser acadêmico ou pesquisador. Nesse sentido, essas redes de televisão brasileiras estão aí para embotar o pensamento das pessoas e brutalizá-las. Essas emissoras treinam seus telespectadores para serem imbecis.

A metáfora da musculação serve para lembrar que a capacidade de compreensão pode se atrofiar se esse movimento não estiver ativado, e isso vale para qualquer um – acadêmicos, políticos, administradores, empresários, trabalhadores braçais etc. Vale para setores prepotentes da nossa classe média e outros extratos de renda inferior. Se o sujeito só condiciona sua atenção para o programa do Ratinho ou do Datena, seu olhar fica incapaz e insensível para perceber e compreender outras situações ou os diferentes nexos entre os fatos. O sujeito acaba confundindo totalidade com situações isoladas.

Compreender implica treino do pensamento e dos vários sentidos – visão, audição, olfato, tato – enfim, uma sensibilidade arejada, aberta e sistêmica para o mundo. Alguns sentidos ficam mais treinados que outros, dependendo das inclinações de cada um. O treino do pensamento se dá, dentre outros elementos, pela capacidade de abstração, análise e síntese. Se ele ou ela só recebe pelo whatsApp imagens de assaltos, fica achando que estes acontecem a todo momento em todos os lugares. É muito comum ouvir no metrô: “estão assaltando toda hora em tudo quanto é lugar!” Se só assiste a reportagens sobre corrupção de políticos, acaba acreditando que o Brasil é dividido entre corruptos e não corruptos e que político é tudo uma merda só. E mais ainda: que o único e principal problema do país é a corrupção.

Para concluir, podemos dizer que a compreensão dos fatos sociais exige imaginação sociológica sem que precisemos ser sociólogos. Mais sociológica do que religiosa – com todo o respeito e sem desmerecer esta última, que está voltada para metafísicas existenciais particulares, mesmo que cultuadas de forma coletiva nas igrejas. Sociológica no sentido de fazermos a conexão do singular com o geral a fim de não confundirmos efeitos com causas, aparências com essências, epidermes com substâncias. Imaginação sociológica, inclusive, para não misturar política com religião.

Os fatos não falam por si sós, nem imagens soltas valem por mil palavras. A notícia que a televisão apresenta não é o espelho do fato, mas uma interpretação do fato. Para a musculatura a que me refiro, as formas podem ser diversas: treinar o olhar em museus, cinemas, exposições; treinar os ouvidos e o coração em shows; treinar a sensibilidade em relação aos outros em caminhadas ao ar livre e tantas outras formas que cada um cria para si.

Uma delas é a prática da leitura sistemática e o confronto democrático de ideias e opiniões. Não leitura apenas das mensagens do whatsApps ou de textos ligeiros do Facebook, mas sim de textos mais longos – leitura de livros, por exemplo, que não precisa ser atividade somente de intelectuais. Comum ouvir: “não manda textão que ninguém lê”. Se isso é verdade, triste Brasil iletrado! O costume da leitura e dos outros treinos que exemplifiquei pode ser vitamina indispensável para a imunização coletiva contra os diversos vírus da mediocridade e da imbecilidade apontada por Humberto Eco.

  1. Uma síntese deliciosa de nossa realidade sociológica e psicológica. Gostaria de acrescentar que uma dificuldade que se apresenta à percepção e interpretação do real, pode ser uma natureza imediatista, como quem consome algo, de olçhar os fatos. Não costumamos nos preocupar com a necessidade de se projetar no tempo vindouro, na efemeridade do real diante da fluidez que sentimos e na qual estamos aprisionados. Como serão as coisas daqui a uma década? Como posso me colocar diante disso? Então, vivemos como se o tempo não existisse. Há uma duração na qual estamos inserido e ela é o único lugar que nos resta. Precisamos estar lá para existir de fato. Parece que a estrutura econômica do descarte invadiu toda a nossa realidade pessoal e existencial; um paradigma que não nos permite pensar na duração.

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