A imprevisibilidade de um fato social total: a COVID-19 e a ação humana na incerteza

A imprevisibilidade de um fato social total: a COVID-19 e a ação humana na incerteza
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No clássico trabalho As Regras do Método Sociológico, Durkheim colocou em realce um conceito que, posteriormente, Marcel Mauss o desenvolveria com um significativo valor analítico inovador: fato social. Mauss agregou um segundo adjetivo ao conceito apresentando-o como facto social total. Partindo de sociedades arcaicas, assinalou que existem fatos que são muito complexos, e que, neles, tudo se mistura, com a sua manifestação ocorrendo de forma relacionada às mais diversas instituições: políticas, econômicas, jurídicas, religiosas, etc. Ou seja, de determinado modo, Mauss antecipa a direção do que Edgar Morin, usando uma expressa latina, chama de complexus (complexo, aquilo que é tecido junto, articulado). A pandemia de COVID-19, como já assinalou Ignácio Ramonet, é um desses fenômenos que pode ser considerado um fato social total, na medida em que, indo além de uma crise sanitária, convulsiona o conjunto de relações sociais e atinge todos os atores, instituições e valores.

As grandes potências mundiais e as tecnologias mais sofisticadas se têm revelado incapazes de frear a COVID-19, ainda mais quando buscam abordá-la de forma segmentada, isolada, por decorrência da influência do modelo medico hospitalocêntrico, que se tem mostrado ineficiente para enfrentar os agravos à saúde. De modo geral, as abordagens sobre vírus são inquietantes porque eles não estão vivos nem tampouco mortos. Não estão vivos porque não se podem reproduzir por si mesmos, e não estão mortos porque podem entrar em nossas células, sequestrar sua “maquinaria” e generalizar a replicação. São eficazes em burlar nosso sistema imunológico. No caso da COVID-19, chama a atenção o fato de que a doença se tem apresentado de forma quase exclusiva em cada pessoa, não permitindo um protocolo único para todos os pacientes, o que exige dos profissionais de saúde observar cada paciente de forma singular, mas a medicina convencional, contudo, não se preparou para individualizar cada pessoa, conforme as suas particularidades; ao contrario, ela trata as doenças, e não as pessoas.

A discussão sobre a origem da COVID-19 está envolta em controvérsia, ao mais alto nível. Apareceu inicialmente em Wuhan, capital da província chinesa de Hubei. Considerando que não foi identificado o paciente zero, isto é, o primeiro contágio de animal a humano, várias hipóteses e especulações têm sido difundidas. Por um lado, na alta cúpula das autoridades chinesas, há o convencimento de que o exército estadunidense produziu o germe num laboratório militar de Fort Detrick (Frederick, Maryland) como uma arma bacteriológica para travar a ascensão chinesa no mundo, e o teria difundido pela China por ocasião dos Jogos Militares Mundiais, uma competição realizada em outubro de 2019 precisamente na cidade de Wuhan. Do lado oposto, nos Estados Unidos, o próprio presidente Trump responsabilizou a China repetidas vezes, depois que o senador republicano Tom Cotton (sempre lembrado como próximo diretor da CIA) apontou o dedo a cientistas militares chineses acusando-os de terem produzido o novo germe em um laboratório de virologia e biosseguridade localizado também na cidade de Wuhan. Em meio a esse controverso enfretamento de versões, que terá desdobramento geopolítico imprevisível no mundo pós-COVID-19, há as abordagens que põem de parte a tese de que ele tenha sido produzido em laboratório. Seja como for, o dissenso de enfoques é grande.

De resto, muitos aspectos sobre o novo agente infeccioso são ignorados. Por exemplo: não se sabe por quantas mutações já passou ou irá passar; por que infecta mais homens que mulheres; por que pessoas com características semelhantes – jovens, sadias, sem patologias associadas – desenvolvem formas opostas da enfermidade (leve, grave, mortal); por que as formas graves não são comuns em crianças; por que pessoas podem ser infectadas sem que, no entanto, a doença seja desenvolvida (ou é desenvolvida de forma leve), etc. Também não se sabe, ao certo, se os enfermos curados se tornam imunizados. Há, contudo, uma ilação científica, advinda especialmente da história da Epidemiologia Social, sobre a qual parece não existir dúvida: embora a COVID-19 apanhe a todos, serão os mais pobres, como ocorre em todas as tragédias humanas, os mais prejudicados.

Por outra parte, há um razoável acordo internacional entre pesquisadores no sentido de reconhecer que o novo germe propagou-se de modo semelhante a outros anteriores, ou seja, “saltando” de um animal a seres humanos. Morcegos, pássaros e vários mamíferos (principalmente suínos) abrigam múltiplos coronavírus. Nos seres humanos, há sete tipos de coronavírus que nos podem infectar. Quatro deles provocam distintas variedades do resfriado comum. Os outros três (de aparecimento recente) produzem transtornos mais letais, como a síndrome respiratória aguda grave (SARS), surgida em 2002; a síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS), de 2012; e agora a COVID-19, causada pela SARS-CoV-2, conforme já enfatizamos. Do exposto, infere-se que, se já convivemos com outros seis coronavírus e os temos globalmente controlados, fica por ser descoberta a razão de este novo patógeno ter provocado tão grandiosa pandemia.

Das evidências já disponíveis, ao que parece, o que distingue o SARS-CoV-2 de outros vírus assassinos é exatamente a sua estratégia de irradiação silenciosa. Quer dizer, a sua capacidade de propagar-se sem levantar suspeita, sequer na própria vítima. Pelo menos nos primeiros dias do contágio. Desde o momento que penetra no corpo da sua vítima, já começa a replicar-se exponencialmente. De acordo com informações de Isabel Sola, pesquisadora do Centro Nacional de Biotecnologia de Espanha, uma vez dentro da primeira célula humana, cada coronavírus gera até 100.0000 cópias si mesmo em menos de 24 horas. Além disso, outra característica única desse patógeno é que ele concentra seu primeiro ataque, quando ainda é indetectável, no trato respiratório superior da pessoa infectada, do nariz à garganta, onde se replica com intensidade frenética. Desde esse momento, a pessoa infectada, ainda sem sentir nenhum sintoma, se torna um agente bacteriológico e começa a transmitir massivamente o vírus em seu entorno.

Ao tempo que o acionamento de conceitos das ciências sociais, em diálogo transdisciplinar com as ciências da saúde, evidencia que a pandemia de COVID-19 é um fato social total, também demonstra que o mundo, em suas diversas esferas, é um sistema em que todas as partes que o compõem, por insignificante que possam parecer, interatuam umas as com outras e podem influenciar a totalidade. Um sistema estruturado em torno de um centro, uma periferia e uma semiperiferia, com elos de dependência que configuram relações internacionais assimétricas. Ou seja, como afirma Theotonio dos Santos, trata-se de uma realidade que emergiu ao fim da Idade Média e que evoluiu na direção de se converter num sistema planetário, existindo até mesmo no bloco de países centrais o que articula esse conjunto dominante, encadeando a hegemonia sobre o restante do sistema.

Não é outra coisa que constatamos quando observamos o que se tem passado com as demonstrações de falta de solidariedade diante da atual pandemia global. Os egoísmos nacionais se têm manifestado de forma brutal e com rapidez. Países vizinhos e “amigos” não têm hesitado em se lançarem, por exemplo, numa “guerra” por máscaras ou em apoderarem-se, tal qual piratas, de material sanitário destinado a outras nações. Governos têm pago o dobro ou o triplo do preço por material sanitário para conseguir os produtos e impedir que sejam vendidos a outros países. Em pistas de aeroportos, contêineres com máscaras têm sido arrancados dos aviões de carga para serem desviados a outros destinos. A Itália acusou a República Tcheca de roubar-lhe lotes de máscaras compradas aos chineses, cujo avião com o produto fez escala em Praga. A França denunciou os Estados Unidos pela mesma razão, que, por sua vez, foi acusada por Espanha de proceder de forma idêntica. Fabricantes asiáticos informaram a governos africanos e latino-americanos que não podiam lhes vender material sanitário, pois, no momento, os Estados Unidos pagavam preços superiores.

Os impactos da pandemia como fato social total, os desencontros entre países e a acirrada disputa geopolítica global (a “nova guerra fria” entre EUA e China), assim como as imprudentes ações de líderes políticos nacionais e a falta de conhecimento científico por parte de grandes parcelas da população, tornam o cenário pós-COVID-19 um horizonte de grande imprevisibilidade. Nações fora do bloco hegemônico no sistema mundial, designadamente em determinadas regiões da periferia e da semiperiferia, possivelmente viverão um período agônico. No interior dos países, é de se prever a decisão do establishment de “cobrar fatura” a alguns segmentos, como os funcionários públicos.

De toda forma, por mais que o cenário pós-COVID-19 seja turvo, há uma esfera fundamental que tem imprescindíveis contributos a aportar na sua superação: a do conhecimento. E nela a instituição universitária tem um papel central a desempenhar, como instância responsável pela produção e difusão do conhecimento sistemático-reflexivo. Numa altura em que jogos do poder cachoam sob o embalo das fake news, repor a razão discursiva é condição necessária para uma sociabilidade sadia que almeja uma sociedade emancipada da ignorância e manipulação.

Por Ivonaldo Leite (sociólogo, UFPB) e Paulo Santana (médico sanitarista, UFPE)