Hierarquização do conhecimento, fetichismo do diploma e comportamento perverso na internet: sintomas da irresponsabilidade midiática

A palavra virtual carrega um significado maior do que uma possível definição elencada na ideia de "realidade da internet". Aliás, esse significado mais abrangente complementa o conteúdo dessa realidade, porque virtual é também sinônimo do que não é real, mas potencial.
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Por Gilberto Torres – A palavra virtual carrega um significado maior do que uma possível definição elencada na ideia de “realidade da internet”. Aliás, esse significado mais abrangente complementa o conteúdo dessa realidade, porque virtual é também sinônimo do que não é real, mas potencial.

Nessa realidade que não é real, mas repleta de potencialidades, percebemos a possibilidade de exercer comportamentos que só são possíveis de serem exercidos em um espaço que não é real. Foi esse tipo de situação que vi ocorrer durante essa semana, por parte de pessoas que inclusive pregam o rechaço aos fenômenos cruéis da internet como as exposições, cancelamentos e derivados.

Recentemente, uma publicação de um portal de divulgação de material científico, e cabe evidenciar que se trata de uma revista disponibilizada online em que são expostos não apenas conteúdos acadêmicos, mas também textos opiniáticos, divulgou uma postagem bastante caricata, similar ao que podemos ver em postagens advindas de meios de comunicação sensacionalistas, em que se estampava os dizeres “Psicanálise: muito papo furado, nenhuma ciência”. A postagem obteve grande repercussão na internet, e deu margem para a implosão de debates acerca de uma discussão que, em um primeiro momento, pode soar bastante específica, em torno do estatuto da psicanálise sob a ótica de uma rixa vulgar entre pesquisas neurocientíficas e psicanálise. Apesar da aparente restrição do debate, a forma como foi repercutida a discussão, em tempos de especialistas raivosos de Facebook, nos dá a possibilidade de enxergarmos uma série de fenômenos sintomáticos expressos em nossas relações com a internet e com a anarquia midiática.

Cabe, aqui, um breve estudo de caso:

Em comentário em que um sujeito dito psicólogo da área de neurociência faz uso de um comportamento absolutamente antiético, ao descaracterizar o tratamento de um sujeito que alegou ter obtido progressos com a psicanálise enquanto psicoterapia, essa mesma pessoa desonesta, que fala de uma área na internet de um jeito que jamais poderia falar em um lugar que é real; é aplaudida por humilhar os outros de um jeito que jamais se proporia a fazer em um ambiente concreto, em que você é obrigado a respeitar as pessoas e em que os deboches têm limite. O profissional, o que banca o culto, se transforma em um sujeito animalesco que, ao ser questionado sobre sua falta de compostura e ética com um assunto, passa a se utilizar dos memes enquanto recebe seus “biscoitos” de sujeitos raivosos que não conhecem a área a qual o desonesto em questão conhece, mas faz questão de descaracterizar.

A desonestidade é ignorada, e esse olhar de passividade ante o comportamento absurdo se dá porque, de início, houve uma carteirada, em que o desonesto se gabou de sua diplomação em psicologia e neurociência, tendo sido requisitado a fazer isso por uma terceira pessoa, que questionou a formação de quem estava a digitar coisas absolutamente antiéticas sobre o tratamento terapêutico de uma pessoa leiga.

A discussão, que de fato não teve conteúdo do início ao fim, contou com a ampla legitimação, por parte do público, de todas as falas de alguém que em momento algum se propôs a ter um comportamento adequado à carteirinha de intelectualizado e professor universitário a qual recorreu [diz-se professor de uma faculdade do interior dos Estados Unidos, como se isso realmente comprovasse qualquer coisa em tempos em que temos pessoas como Jordan Peterson dando aula sobre marxismo em Universidade norte-americana, tendo confessado em debate com o filósofo marxista esloveno Zizek que, em sua vida, leu somente o Manifesto Comunista, mas vamos deixar uma análise desse tema para a próxima].

Com tranquilidade, aponto que é bem possível que essa legitimação tenha se dado porque há um comportamento de incontestabilidade totalizante a quem tem diplomação em áreas da denominada hardscience, como a neurociência. Se o sujeito estuda hardscience, ele se sente autorizado a agir como um completo sensacionalista na internet, porque mesmo tendo um comportamento que em qualquer ambiente real seria considerado completamente inadequado, em que a única coisa que fez foi falar absurdos opiniáticos sobre outra área e mandar links de alguns artigo-comentários feitos por acadêmicos em sites opiniáticos [o que não se trata de discutir e apresentar argumentos, mas, novamente, tentar dar outra carteirada, mostrando a opinião de pessoas também hostis à outra área], ainda assim, ele vai ser colocado em um âmbito de incontestabilidade. Sem apresentar sequer o mínimo de responsabilidade com o que fala, após ter demonstrado ser professor da área da ciência na psicologia, vemos aí a facilidade para emocionar pessoas raivosas na internet com a mediocridade retórica da apelação ao fetichismo do diploma. Dá para considerar condição de honestidade intelectual uma pessoa dizer a alguém leigo que deveria desistir da psicoterapeuta com a qual o leigo sentiu progresso? É aceitável descaracterizar uma área que, em ambiente real, acadêmico e teórico, não é, em lugar algum do mundo, colocada como algo ineficaz? Esse é o típico comportamento que demonstra como na internet é possível extravasar uma persona que, em hipótese alguma, seria extravasada na vida real. Que pessoa em sã consciência, com diplomações, teria coragem de, em um ambiente em que você precisa lidar com as pessoas respeitando o status de ser humano das pessoas, ainda mais se tratando de uma temática como essa, descaracterizar o tratamento dos outros e conversar via citação de artigo opiniático, de forma irônica?

Cabe aí, também, refletirmos acerca da hierarquização do diploma e das epistemologias. Atualmente, se qualquer sujeito das ciências humanas, passar a se comunicar com as pessoas mandando artigos opiniáticos de gente de nossa área, vamos ser vítimas imediatas de zombaria na internet. Ninguém levaria a sério um comportamento desses, porque isso não é, de fato, argumentar com ninguém. Não há comunicação, há aí a mística da autoridade. Uma coisa é você expor teus pontos e trazer complementações, como artigos, outra é você só mandar links aos outros e achar que a argumentação para por aí, simplesmente porque você supostamente dá aula de epistemologia em uma universidade, que também está imersa em uma disputa política por detrás do debate psicanálise x neurociência, como qualquer outra (o que explicita que dar aula de determinada coisa não necessariamente significa domínio de determinada área e muito menos representa “refutar” algo ou alguém, porque se você dá aula em um ambiente de tendências determinadas, você, individualmente, não precisa necessariamente saber sobre tendências consideradas adversárias, embora seja o ideal em nome de tua profissão. Vale adicionarmos que muitos intelectuais fazem esse exercício ético e tem essa a fundamental disposição à integridade, indissociável do fazer intelectual, que se volta para a realidade). A disputa político-acadêmica, em substratos de vida real, é feita de forma honesta.

Essa é a internet e seus sintomas em tempos de cultivo dos desprezos na onda da anarquia midiática. Onde perversidade e desonestidade é motivo de risada desde que sejam comportamentos direcionados ao que você não gosta. Lugar não-lugar em que as pessoas podem extravasar sadismos e pedantismos estúpidos e ainda receber aplauso.

Quem se omite e dá risada, compactua com o mesmo comportamento. A ciência oferece muito mais e merece mais do que sujeitos com cólera e intelectualóides de carteirinha. Não só podemos, como devemos, fazer da internet um não-lugar melhor.

Por Gilberto Torres, estudante.