JAMES BALDWIN: Sobre ser “branco” e outras mentiras

Foto em preto e branco de James Baldwin sobre fundo branco. Ele olha alto para o horizonte.
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A crise de liderança na comunidade branca é notável – e aterrorizante – porque não existe, de fato, nenhuma comunidade branca.

Essa pode parecer uma afirmação de grande impacto – e é. Estou disposto a ser contestado. Também estou disposto a tentar explicar.

Meu quadro de referência é, claro, a América, ou aquela porção do continente norte-americano que chama a si mesma de América. E isso significa que estou falando essencialmente da visão europeia de mundo – ou mais precisamente, talvez, da visão europeia de universo. Trata-se de uma visão tão notável pelo que ela pretende incluir quanto pelo que ela implacavelmente diminui, destrói ou deixa totalmente de levar em conta.

Existe, por exemplo – pelo menos em princípio – uma comunidade irlandesa: aqui, ali, em qualquer lugar ou, mais precisamente, em Belfast, Dublin, Boston. Existe uma comunidade alemã: os dois lados de Berlim, a Baviera e Yorkville. Existe uma comunidade italiana: Roma, Nápoles, o Banco do Espírito Santo e a Muberry Street. E existe uma comunidade judaica que se estende de Jerusalém à Califórnia e a Nova York. Existem comunidades inglesas. Existem comunidades francesas. Existem consórcios suíços. Existem poloneses: em Varsóvia (onde eles gostariam de nos ter como amigos) e em Chicago (onde, por serem brancos, somos inimigos). Existem, aliás, restaurantes indianos e banhos turcos. Existe o submundo – os pobres (para não falar daqueles que pretendem enriquecer) estão sempre conosco –, mas isso não descreve uma comunidade. Antes testemunha de maneira aterradora o que aconteceu a todos que chegaram aqui pagando o preço da passagem. O preço era tornar-se “branco”. Ninguém era branco antes de vir para a América. Foram necessárias gerações e uma grande quantidade de coerção até que este se tornasse um país branco.

Foi provavelmente a comunidade judaica – ou mais rigorosamente, talvez, seus remanescentes – que na América pagou o mais alto e extraordinário preço para se tornar branca. Pois os judeus vieram para cá de países onde não eram brancos, e eles vieram para cá, em parte, porque não eram brancos; e incontestavelmente aos olhos do negro americano (e não apenas a seus olhos), os judeus americanos optaram por se tornarem brancos e é assim que eles operam. Foi irônico ouvir, por exemplo, o ex-primeiro ministro israelense Menachem Begin declarar há algum tempo que “o povo judeu se curva apenas a Deus” quando se sabe que o Estado de Israel é sustentado por um cheque em branco de Washington. Mesmo sem acompanhar as implicações desse mútuo ato de fé, as pessoas estão, contudo, cientes de que a presença negra, aqui, dificilmente pode ter a esperança – pelo menos por enquanto – de deter a carnificina na África do Sul.

E há uma razão para isso.

A América tornou-se branca – as pessoas que, como elas dizem, “colonizaram” o país, tornaram-se brancas – por conta da necessidade de negar a presença negra e justificar a subjugação dos negros. Nenhuma comunidade pode se basear em tal princípio – ou, em outras palavras, nenhuma comunidade pode ser estabelecida sobre uma mentira tão genocida. Homens brancos – da Noruega, por exemplo, onde eram noruegueses – tornaram-se brancos: abatendo o gado, envenenando os poços, incendiando as casas, massacrando os nativos americanos, estuprando mulheres negras.

Essa erosão moral tornou praticamente impossível para aqueles que se consideram brancos neste país terem qualquer autoridade moral – privada ou publicamente. A numerosa multidão deles se senta, atordoada, diante de seus televisores, engolindo o lixo que eles sabem ser lixo e – em um esforço profundo e inconsciente para justificar esse torpor que esconde um pânico profundo e amargo, presta muita atenção nos esportes: mesmo sabendo que o jogador de futebol (o Filho da República, seus filhos!) é apenas outro ponto do esquema para ganhar dinheiro. Eles estão aliviados ou amargurados pela presença do garoto negro no time. Eu não sei se eles se lembram de quanto tempo e esforço foram empenhados em mantê-lo longe dali. Sei que eles não ousam ter qualquer noção do preço que os negros (mães e pais) pagaram e pagam. Eles não querem saber o significado, ou encarar a vergonha, do que eles obrigaram – de onde tiraram a necessidade de serem brancos – Joe Louis ou Jackie Robinson ou Cassius Clay (aka Muhammad Ali) a pagar. Mas sei que eles próprios não gostariam de tê-lo pago.

Nunca houve um movimento de trabalhadores neste país, o que está provado pela ausência negra nos sindicatos ditos de pai-para-filho. Há, talvez, alguns crioulos na janela; mas negros não têm poder nos sindicatos.

Assim a comunidade branca, como meio de manter-se branca, elege o que ela imagina ser seus representantes políticos. Nenhuma nação do mundo, incluindo a Inglaterra, é representada por um panteão tão impressionante e implacavelmente medíocre. Não citarei nomes – deixo isso a vocês.

Mas essa covardia, essa necessidade de justificar uma identidade totalmente falsa e de justificar o que deve ser chamado de uma história genocida, fez com que todos vivessem agora nas mãos das pessoas mais ignorantes e poderosas que o mundo já viu: e como eles conseguiram isso?

Ao decidir que eles eram brancos. Ao optarem pela segurança em vez da vida. Ao persuadirem-se de que a vida de uma criança negra não significava nada se comparada à vida de uma criança branca. Ao abandonarem seus filhos às coisas que os homens brancos poderiam comprar. Informando seus filhos de que mulheres negras, homens negros e crianças negras não tinham a integridade humana a que os que chamam a si mesmos de brancos estavam obrigados a respeitar. E nessa depreciação e definição dos negros, eles degradaram e difamaram a si mesmos.

E levaram a humanidade ao limite do esquecimento: por pensarem que são brancos. Por pensarem que são brancos, eles não ousam enfrentar a devastação e a mentira de sua história. Por pensarem que são brancos, eles não podem se deixar atormentar pela suspeita de que todos os homens são irmãos. Por pensarem que são brancos, eles estão procurando, ou bombardeando, populações estáveis, nativos alegres e mão-de-obra barata. Por pensarem que são brancos, eles acreditam, do modo como nenhuma criança acredita, no sonho da segurança. Por pensarem que são brancos, por mais vociferantes que possam ser e por mais numerosos que sejam, eles estão tão sem palavras quanto a mulher de Ló – olhando para trás, transformados em uma coluna de sal.

Contudo! – Uma vez que ser branco é, em todo caso, uma escolha moral (pois não existem pessoas brancas), essa crise de liderança não é nada de novo para aqueles de nós cuja identidade foi forjada ou marcada como negra.  Nós – que não éramos negros antes de chegarmos aqui, que fomos definidos como negros pelo tráfico de escravos – pagamos pela crise de liderança na comunidade branca há muito tempo, e temos de modo ressonante, mesmo quando enfrentamos o pior de nós mesmos, sobrevivido e triunfado sobre ela. Se não tivéssemos sobrevivido e triunfado, não haveria um único negro americano vivo.

E o fato de ainda estarmos aqui – mesmo em sofrimento, escuridão, perigo, definidos sem cessar por aqueles que não ousam definir, ou mesmo confrontar, a si mesmos – é a chave para a crise da liderança branca. O passado nos informa de vários tipos de pessoas – criminosos, aventureiros e santos, para não falar, é claro, de papas – mas é a condição negra, e apenas ela, que nos informa sobre as pessoas brancas. É um paradoxo terrível, mas aqueles que acreditavam poder controlar e definir os negros se despojaram do poder de controlar e definir a si mesmos.

 

[*] Texto publicado originalmente na Essence Magazine em 1984.

[**] Traduzido por Pedro Davoglio