João Gilberto e a Utopia Social da Bossa Nova

João Gilberto e a utopia social da bossa nova.
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How can you be an artist and not reflect the times?

Nina Simone

A questão central se limita a saber se temos ou não possibilidade de preservar nossa identidade cultural. Sem ela seremos reduzidos ao papel de passivos consumidores de bens culturais concebidos por outros povos

Celso Furtado

 

Não “gostar” da música de João Gilberto não é razão para desconhecer sua obra. De certo modo, ignorá-la é rebaixar-se, como acontece com todos os grandes artistas. Para além das conquistas estéticas e musicais que João Gilberto nos legou – e que são extensivamente estudadas por músicos de todo o mundo –, é preciso perguntar: o que está em jogo socialmente? Qual a utopia social por ele proposta?

O baiano de Juazeiro foi o ponto mais alto da música brasileira até hoje e seu maior gênio criativo. João tirou a batida da bossa nova do remelexo das lavadeiras em que reparava durante a infância. Aquele “chi-qui-dun” que elas faziam enquanto lavavam as roupas no rio lhe tocou de maneira profunda. O povo brasileiro, desde a concepção, está estranhado em sua obra.

Aos desatentos, as canções parecem monótonas e sem graça. O canto baixinho e um violão aparentemente sempre igual levam os mais impacientes ao desprezo completo. Mas a obra de João Gilberto exige atenção, como bem disse Walter Garcia.  É preciso apurar os cinco sentidos e perceber as enormes (e, ainda assim, sutis) diferenças que João Gilberto conscientemente coloca em cada detalhe de cada canção. João nunca canta duas vezes a mesma coisa. Walter Garcia diz que ele propõe um jogo de “branco sobre branco”, no qual o “jogo sonoro não se estrutura pela oposição dos elementos”, mas “se constrói por tensões em nuança”.[1]Assim, sua obra ganha uma riqueza não encontrada em nenhum outro artista brasileiro.

Vontade férrea e treinamento árduo o levaram à perfeição na execução de suas canções. Mas nem tudo foram flores. No começo de sua carreira, após uma temporada de insucessos no Rio de Janeiro, João Gilberto vai para Porto Alegre, depois Diamantina e, por fim, Juazeiro. Passa dois anos, de 1955 a 1957, longe do Rio, que era o centro da música brasileira à época. Em Diamantina, passa oito meses em solidão monástica, criando e desenvolvendo aquilo que seria conhecido depois como a nova batida no violão da bossa nova, que mudaria para sempre a história da música popular brasileira.

Sobre sua volta ao Rio de Janeiro, em 1957, João Gilberto, em entrevista, diz que finalmente estaria “apto para lutar em situação de igualdade com muita gente. O sofrimento havia me dado a necessária experiência”. [2]

 

 

A batida do samba

Pode-se dizer que João Gilberto cria seu próprio mundo a partir de uma redução estilizada do samba.

Os elementos característicos da batucada do samba são transformados, na obra de João Gilberto, em um projeto mais intimista e suave. A escola de samba ruidosa e impessoal é refinada, simplificada, e se transforma em uma batida de violão suave e íntima, como se se tratasse de uma conversa entre amigos.

Aquilo que pode parecer monótono e repetitivo aos ouvidos menos atentos é, na verdade, profunda atenção aos mínimos detalhes da execução da canção. Quem “ouve com ouvidos de ouvir” percebe as inúmeras e sutis mudanças a cada verso cantado. Caetano Veloso compara João Gilberto a um calígrafo chinês, tamanho seu treinamento, concentração e precisão: “João é sideral e subterrâneo. As surpresas que ele incessantemente cria nas áreas do ritmo, do drama e dos acordes são a expressão necessária de uma sensibilidade propriamente artística […]. A arte de João é semelhante à do calígrafo chinês. Sua sutileza e sua carga de inteligência concentrada levam a canção a um céu além do céu, a um âmago além do fundo da terra. Um grave arranhado que não perde a nota e serve de percussão funciona como uma pincelada que muda o sentido da palavra desenhada. Seu canto transforma e revela cada canção de que se aproxima”.[3]

 

 

O projeto moderno

João Gilberto é um artista eminentemente moderno. Com isso, quero dizer que ele absorve e dá continuidade ao modernismo do início do século XX. A principal consequência disso talvez seja que sua obra se objetifica, isto é, pode ser apreendida por si, está separada (tanto quanto possível) de seu criador.

É possível, assim, avaliar sua obra por aquilo que ela efetivamente é (o objeto criado), e não por caprichos pessoais e dados biográficos, embora estes possam em alguma medida elucidar questões pontuais.

Por isso é que João Gilberto é o centro da música brasileira no século XX: ele referencia todos os artistas antes dele e é referência para todos os que vêm depois.

Mais do que isso, afirmar que João Gilberto é um artista moderno significa, também, dizer que sua obra é balizada por dois Brasis: (i) um Brasil arcaico, rural, que ruía e (ii) um Brasil moderno que se projetava desde a Revolução de 1930, mas ainda não estava concluído.[4] Trata-se da alteração qualitativa na estrutura produtiva brasileira, de um Brasil agrário e rural para um Brasil urbano e industrial. Essa tensão entre esses dois projetos de nação tem como reflexo a melancolia, identificada por Walter Garcia ao longo de toda a obra de João Gilberto. [5] Adiante, argumentarei que essa tensão também pode ser interpretada como utopia social, isto é, a aposta nesse Brasil moderno que ainda não se realizou, mas tem todas as condições de fazê-lo.

João Gilberto, assumindo plenamente a faceta de um artista moderno, é capaz de captar e exigir de seus colaboradores e dos próprios ouvintes o máximo do progresso técnico disponível, o ápice da tecnologia da época. Isso não é pouca coisa. Atuar no mesmo nível técnico dos países centrais (quem suga a renda mundial) estando em um país periférico (quem tem sugada sua renda) exige do artista disciplina, treinamento e vontade implacáveis, planejamento de longo prazo, perfeição na execução das atividades, enfim condições materiais que são próprias do centro, e não da periferia.[6]

 

https://youtu.be/eJZN-GtCPio

 

O canto baixinho

Para os mais desavisados, o canto em volume baixo pode soar como desleixo ou incapacidade do artista em atingir volumes mais altos. Ocorre o contrário com João Gilberto. A aposta é justamente aproximar o canto à fala, como quem, em um show para milhares de pessoas, convida o ouvinte a um ambiente mais suave e acolhedor, de caráter eminentemente pessoal: “João Gilberto tenta reproduzir na melodia todos os parâmetros do som, sem que por isso a voz se torne instrumento — ao contrário, aproximando sempre mais o canto à fala. É uma aspiração recorrente na música ocidental, colher a articulação com que a melodia se destaca da palavra, mas ainda manter uma ligação necessária com ela, encontrar o momento exato em que o canto adquire forma própria, sem que esta seja outra coisa além da forma do falar, sublimada. Em João Gilberto tudo isso parece alcançar uma realização.”[7]

Outro aspecto notório de João é o uso contido do vibrato, em contraste marcante com os artistas de sua época, como quem pretende se afastar do exagero das emoções derramadas e assumir uma postura de distanciamento.[8]

O canto baixinho também expressa um elemento de controle, numa confusão entre “mandonismo tradicional” e “rigor moderno”: “João Gilberto controla habilmente o ouvinte sem (precisar) erguer a voz”.[9]

 

 

O Brasil em jogo: projeto utópico

No meio do caminho entre o Brasil arcaico que ruía e o Brasil moderno que não se constitui está a obra joãogilbertiana. Ela simultaneamente aponta para esses dois Brasis: ora como melancolia de um tempo que teima em não passar, ora como aposta utópica e moderna.

A face utópica está muito próxima daquilo que Darcy Ribeiro vaticinava ao Brasil e à América Latina: a “civilização mestiça e tropical”, nós, “os povos novos”, “mais alegre porque mais sofrido”, assentados “na mais bela e luminosa província da Terra”, sermos exemplo para a humanidade inteira. [10]

Nesse ponto, o observador mais atento poderia perguntar “e a melancolia?”. Se tudo é “promessa de felicidade”, como diz Mammì,[11] por que é possível identificar ao longo de toda a obra de João Gilberto traços de melancolia?

Entendo que a melancolia se enquadra na relação conflituosa e paradoxal entre o Brasil arcaico que persiste e o Brasil moderno que (ainda) não se conquista. Nesse sentido, a melancolia parece ser uma das externalizações do subdesenvolvimento.[12] Outra externalização do subdesenvolvimento é a aposta utópica, nos termos aqui postos.

Em outras palavras, o que quero dizer é que o subdesenvolvimento engendra, na obra de João Gilberto, tanto a utopia social (a aposta nesse Brasil que pode dar certo), quanto a melancolia (quando o artista percebe a passagem do tempo sem que nada mude). A caracterização do povo brasileiro como “mais alegre porque mais sofrido” de Darcy Ribeiro também parece ir nessa direção.

A passagem a seguir, retirada de uma entrevista à Folha de São Paulo, expressa com precisão o caráter simultaneamente utópico e melancólico com o qual João Gilberto vê o Brasil:

Os americanos perceberam que o Brasil estava mudando no final dos anos 50 e no começo dos 60. Havia Juscelino. Havia a bossa nova, que estava tomando o mundo. Havia uma porção de coisas acontecendo no Brasil. Ainda não havia um povo consciente de si mesmo, mas havia indivíduos: havia um povo em formação. E o que os americanos fizeram? Fizeram com que fosse dado um golpe militar e viesse a ditadura. Vinte anos depois, o Brasil estava todo escangalhado e ainda não se recuperou. [13]

 

 

O País que “estava mudando”, o Presidente “Juscelino”, a “bossa nova”, o “povo em formação”, uma “porção de coisas” apontam para uma determinada utopia de Nação, iniciada em 1930, com Getúlio Vargas, e continuada com Juscelino Kubitschek e João Goulart, até que vieram “os americanos”, o “golpe militar” e a “ditadura”. A face melancólica – e (talvez) por isso mesmo utópica – dessa última frase é patente: o artista percebe a passagem do tempo e, “vinte anos depois”, o Brasil “escangalhado” “ainda não se recuperou”.

A utopia social de João Gilberto, então, parece estar ligada ao que Celso Furtado chamou de “superação do subdesenvolvimento”. Seria preciso enterrar de uma vez por todas o Brasil arcaico e subdesenvolvido e construir em seu lugar uma civilização moderna e tropical. “Tem que fazer direito, tem que fazer o Brasil”, afirmou João em um show. O violão e a voz de João Gilberto estavam na base de um Brasil que, ao final da década de 1950, estava exportando arte, em vez de produtos primários.

Em tempos de crise, como a presente, é preciso olhar em volta, para trás e para a frente. Popa, chão e proa. As obras daqueles que de alguma maneira se destacaram têm algo a mais a nos dizer do que as reverberações em seus campos específicos. Machado de Assis e Guimarães Rosa são mais que literatura; Drummond, mais que poesia; César Lattes, mais que física; Lucio Costa e Niemeyer, mais que arquitetura e urbanismo; Tarsila do Amaral, mais que pintura; Santos Dumont, mais que aviação; San Tiago Dantas, mais que direito; Niède Guidon, mais que arqueologia; Celso Furtado, mais que economia; Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, mais que política. João Gilberto é, sem dúvida, mais que música. Na obra desses gigantes, o que está em jogo é o Brasil.

Em tempos de destruição da República, a verdade é que João Gilberto pode nos ajudar a refundar o Brasil sob outras bases. Eu fico contente da vida em saber que João é Brasil.

 

https://youtu.be/yHwy60-AFvc

Referências

Referências
1  GARCIA, Walter. “O claro enigma de João Gilberto”. In: Folha de São Paulo, 11 de junho de 2011. Disponível em: Saiba mais.
2 “Os quase dois anos que João Gilberto passou longe do Rio de Janeiro, entre 1955 e 1957, permanecem como um dos períodos mais misteriosos e decisivos de nossa história cultural. Período insondável, mas ainda sim crucial na compreensão de seu projeto artístico. Pois o estilo por ele criado não é fruto de uma carência de meios, ou de um mero capricho do acaso. E sim o resultado de uma construção meticulosa, profundamente refletida, finamente trabalhada. Construção que se deu em boa parte, ao que tudo indica, nos oito meses que passou na casa de sua irmã Dadainha em Diamantina-MG. Foi pra lá que João seguiu, depois da temporada em Porto Alegre. Tocava violão desde os 14 anos, mas somente a partir dali começou a dedicar-se inteiramente ao instrumento. Conta-se que enquanto a cidade inteira ganhava as ruas para festejar a eleição de Juscelino Kubitschek, cidadão de Diamantina, como novo Presidente do Brasil, João Gilberto persistia em monástica solidão criativa. A postura de recolhimento, que marca o artista até hoje, está estranhada em sua música. Nada mais contrário a seu projeto artístico do que a multidão, com sua ruidosa e impessoal presença. Estamos falando da criação de um ambiente sonoro no qual o que se pretende preservar acima de tudo é o elo afetivo da intimidade […]”. Cf. TIM TIM POR TIM TIM – A música de João Gilberto, Bloco 1. Apresentado por: Romulo Froes. Poços de Caldas: Rádio Batuta, 10 de junho de 2011. Duração 3h43’. Roteiro de Paulo da Costa e Silva. Disponível em: Saiba mais. (Acesso em 29/05/2017).
3 VELOSO, Caetano. “João, o calígrafo chinês”. Folha de São Paulo, São Paulo, 10 de julho de 2008. Disponível em: Saiba mais. (Acesso em 1/6/2017).
4 Lorenzo Mammì vê essa questão por outra chave: “A intimidade tão exibida dos shows de bossa nova, o excesso de apelidos carinhosos (Tonzinho, Joãozinho, Poetinha), tão contrastantes com a boemia cruel de Noel Rosa, esta necessidade contínua de confirmações afetivas — tudo isso talvez sinalize um mal-estar de quem ficou suspenso entre uma antiga sociabilidade, que se perdeu, e uma definição nova, mais racional e transparente, que não conseguiu se realizar. Ou talvez seja a forma com que a geração criadora do novo estilo resiste em se reconhecer produtiva, apresentando o seu mais rigoroso trabalho como um lazer, como o resultado ocasional de uma conversa de fim de noite”. Cf. MAMMÌ, Lorenzo. “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, op. cit., p. 64.
5 Um dos traços mais característicos desse fato é a própria capa do disco Chega de Saudade de 1959, em que João faz a pose clássica da melancolia, identificada na gravura “Melencolia I” de Albrecht Dürer no ano de 1514, como ensina o professor Walter Garcia em suas aulas no IEB/USP. Para a discussão sobre a melancolia na obra de João Gilberto, cf. GARCIA, Walter. “Cordialidade, melancolia, modernidade”. In: ______ (Org.). João Gilberto. São Paulo: Cosac Naify, 2012, pp. 207-231.
6 João, comentando a canção “Saudosa maloca”, afirma: “É um filme. Tenho até medo de falar essas coisas. Se é pra fazer malfeito, melhor não fazer. Deixa como canção. Mas é um filme” (grifo nosso). Cf. GARCIA, Walter. “Cordialidade, melancolia, modernidade”, op. cit., p. 212. Outra chave para analisar o caráter moderno da obra de João Gilberto está em sua relação com a poesia de Drummond, explicitada por Walter Garcia no mesmo artigo: GARCIA, Walter. “Cordialidade, melancolia, modernidade”, op. cit., pp. 220-224.
7 MAMMÌ, Lorenzo. “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, op. cit., p. 66.
8 Cf. TIM TIM POR TIM TIM – A música de João Gilberto, op. cit., bloco 4.
9 GARCIA, Walter. “Cordialidade, melancolia, modernidade”, op. cit., pp. 225-226.
10 Cf. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 452-455.
11 Cf. MAMMÌ, Lorenzo. “João Gilberto e o projeto utópico da bossa nova”, op. cit., p. 70.
12 Adoto, aqui, o conceito de desenvolvimento de Celso Furtado: “Quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou, produz-se o que chamamos desenvolvimento. Este somente se efetiva quando a acumulação conduz à criação de valores que se difundem na coletividade”. Cf. FURTADO, Celso. O capitalismo global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, p. 47.
13 CONTI, Mário Sergio. “O diário do mito”. Folha de São Paulo, São Paulo, 20 de julho de 2000. Disponível em: Saiba mais. (Acesso em 10/06/2017). O referido trecho também pode ser encontrado em GARCIA, Walter. “Cordialidade, melancolia, modernidade”, op. cit., p. 218 (nota 21).