João Gilberto: O Brasil já foi tão bonito

Olha, repara, ausculta: a música de João não morreu. Vê, contempla, abre teu peito: o projeto de João ainda está por se cumprir.
Botão Siga o Disparada no Google News

João Gilberto se foi e o Brasil perdeu o maior artista que já teve. Artista no sentido literal da palavra: João era o artesão da nacionalidade brasileira, capaz de decifrar uma parte do Brasil com uma dedilhada de acordes, sentado num banquinho e com um violão.

A obra que João Gilberto nos deixou faz parte do patrimônio brasileiro. Disso, o mundo todo sentirá a boa inveja. João é nosso. Decifrou as especificidades do povo brasileiro. Deu-lhas expressão artística. Trabalhou incessantemente seus mínimos detalhes. Se há perfeição em arte, João é o único que a alcançou.

A mídia reverbera incessantemente as alcunhas do mestre criador da bossa nova, mas falta o principal: João é excepcional não pelo que as notícias reverberam de modo canhestro (as brigas familiares, a idiossincrasia, os hábitos); ele é um patrimônio do Brasil por sua obra.

João é João porque foi capaz de captar o “remelexo das lavadeiras de Juazeiro”, que faziam um chi-qui-dun com o corpo que lhe tocou profundamente (e que, depois, veio a se tornar aquela batida que encantaria o mundo todo: um ritmozinho novo, mecanicamente simples, mas musicalmente complexo – uma bossa nova), e de abrir espaço para uma geração da música que queria modernizar o país: marcou posição em relação ao passado e propôs programas para o futuro. Popa, casco, proa.

A bossa nova é uma aula de samba. “Um sambinha”, como a definia João. Uma redução estilizada do samba, capaz de conter em si o estrondo poderoso de uma escola de samba, “um modo de, radicalizando o refinamento, reencontrar a mão do primeiro preto batendo no couro do primeiro atabaque no nascedouro do samba”, como ensina Caetano.

“João Gilberto é o maior artista brasileiro. Ele não procura exibir capacidade neuronal para a música. Ele vai sempre mais para dentro do essencial da música (da canção escolhida, da música composta, da Música como instância humana) e mostra com simplicidade a complexa rede de sugestões de que uma peça poético-musical é capaz, abrangendo História, religião, política, plasticidade, matemática, psicologia, moral, afetos. Com ele não é gincana em que competem velocidade de execução, precisão de afinação do instrumento e enfeite harmônico (que tantas vezes ilude-se de enriquecer o que já é rico). Não. João vai ao fundo do que é a peça e analisa seu contexto. Mudou a história da música popular no Brasil, seu passado e seu futuro. Os jornais querem saber de sua vida. Deveriam tentar saber melhor de sua música. Sua música é vida”.

Entre o gesto de euforia do vencedor e o lamento inerte do vencido, equilibra-se a obra joãogilbertiana. Sua música carrega consigo uma espécie de perplexidade. Apesar da perfeição em sua execução, algo parece faltar. Sua música é capaz de reverberar, ao mesmo tempo, poesia e profecia. O que poderia ter sido; o que ainda não chegou a ser. Mais que isso: o Brasil que poderia ter sido; o Brasil que ainda não chegou a ser, mas que precisa ser construído.

Em um de seus shows nos Estados Unidos, bem no começo de sua carreira, quando os ombros carregavam o peso do mundo, João disse:

“Eu sentia que tinha que corresponder. Pedia a Deus que me libertasse de todos os problemas, que me fizesse bem descontraído, para que a música passasse por mim sem encontrar barreiras. Que eu fosse apenas um veículo. Queria que o público visse ali não o João Gilberto, mas o Brasil; que eles sentissem, a partir de mim, tudo que eu trazia de experiências vividas. Eu queria ser acima de tudo, naquele momento, um brasileiro”.

Quando Tom Jobim morreu, João recordou:

“Antonio Carlos Jobim era um poeta, um filósofo. Tom era bom. Sabe, um homem bom? Pois é: era Antonio. Tom e bom é a mesma coisa. Divertido, inteligente, tão cheio de sensibilidade. Tom é uma das melhores pessoas que conheci na vida. Dizer assim, “das melhores”, é pouco. Conheci muitas pessoas boas, mas Tom era espetacular. Um escândalo. Nem sei dizer.

Lembro de Tom na gravação de Chega de Saudade. Ele estava ali, na cabine, e eu no estúdio. Tom estava olhando, tinha os olhos emocionados, entusiasmados. Para fazer “O Amor, o Sorriso e a Flor”, subi a serra, até Petrópolis. Cheguei à noite, chovia, o carro encalhou, o trator veio tirar. Tom gostava de bichos, de plantas. Ele prestava atenção numa formiga passando. Imitava o barulho do macaco. Ele falava de pássaros, assobiava. Era um brasileiro.

Lembro de Tom no concerto no Carnegie Hall. Ele moço, tocando piano. Nós ali, fazendo música. Nós ali, representando o Brasil. A gente querendo homenagear o Brasil, querendo o bem do Brasil. Nós querendo fazer uma coisa boa para o país. Um Brasil que fosse representado pela sua música, uma música bonita. Era uma coisa meio infantil, ilusão da juventude, o que seja. Mas acho que fizemos alguma coisa pelo Brasil. Tom fez tanto pelo Brasil (João Gilberto chora, chora, chora). O Brasil já foi tão bonito…

Estou aqui, falando no telefone sem fio, de frente para a janela que mostra o Rio de Janeiro. Estou vendo o mar, a Lagoa, os morros. O Rio de Tom. O Rio de Janeiro do meio amigo Antonio Carlos Jobim. Mas agora onde está Tom? É Drummond, de quem Tom gostava tanto, quem pergunta: “E se todos nós vivêssemos?”

Olha, repara, ausculta: a música de João não morreu. Vê, contempla, abre teu peito: o projeto de João ainda está por se cumprir.