Judas e o Messias Negro: O terrorismo de Estado contra os Panteras Negras

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Estreou essa semana no Brasil o filme Judas e o Messias Negro sobre Fred Hampton, vice-presidente nacional e presidente da seção de Illinois dos Panteras Negras, e o infiltrado do FBI, William O’Neal, que se tornou um dos homens de confiança de Hampton.

Na esteira de Spike Lee, o celebrado veterano do cinema negro dos EUA com o icônico Malcolm-X interpretado por Denzel Washington em 1992 e vencedor do Oscar com Infiltrado na Klan de 2018, o jovem diretor Shaka King e o ator em ascensão em Hollywood Daniel Kaluuya trazem luz à história de mais um herói do movimento negro que foi assassinado em meio aos conflitos raciais dos anos 1960 e 1970 nos EUA.

O filme, que faz parte de um momento de ascensão dos negros na indústria do cinema nas últimas décadas, retrata o terrorismo de Estado do FBI de J. Edgar Hoover na perseguição aos Panteras Negras nos EUA. Ao contrário de Infiltrado na Klan de Spike Lee que mostra por dentro o movimento mais racista, terrorista e ressentido da abolição da escravidão e da Lei de Direitos Civis que proibiu a segregação, dessa vez a infiltração é no movimento negro mais radical da época, que defendia o fim do capitalismo e um futuro sem racismo chamado socialismo.

Fred Hampton liderava uma das seções mais bem sucedidas dos Panteras Negras. O foco da atuação do grupo era criar uma rede de assistência social para as famílias negras pobres de Chicago com creches e cafés da manhã, e a arrecadação de dinheiro para criar uma clínica médica gratuita. William O’Neal era um ladrão de carros que foi capturado e chantageado pelo FBI para se infiltrar nos Panteras Negras e se aproximar de Hampton.

A suposta truculência, o discurso sectário, e a auto-defesa armada dos Panteras Negras são incrivelmente submetidas à inteligência política e o pragmatismo de Hampton que cria uma “Coalização Arco-Íris” com William “Preacherman” Fesperman da Organização dos Jovens Patriotas que mobilizava brancos pobres por direitos sociais e José “Cha Cha” Jiménez da Organização dos Jovens Senhores que defendia os imigrantes porto-riquenhos e latinos em Chicago.

Essa união entre diversas raças e pautas diferentes, dos negros, latinos e brancos de esquerda, desde reformas sociais à revolução socialista, da “new left” até o movimento pacifista contra a Guerra do Vietnã, é que assustava J. Edgar Hoover. O discurso oficial do governo passa a ser o de igualar a Ku Klux Klan e os Panteras Negras. Num determinado momento, um agente do FBI chega a citar o assassinato de ativistas de direitos civis em 1964, caso que virou um filme de muito sucesso chamado Mississipi em Chamas com Gene Hackman, Willem Dafoe e Frances McDormand, no qual o FBI efetivamente investigou e destruiu toda a organização da Klan na região.

De fato, o governo americano enviou tropas federais para impor o fim da segregação nos estados do Sul após a aprovação da Lei dos Direitos Civis. Porém, a versão de que o governo federal, a União, representava a “democracia” e o combate ao racismo contra os governos estaduais racistas do Sul é apenas ideologia propagada pelos aparelhos culturais do Norte. Pois a política real da União sobre os movimentos sociais era debelar todos, sejam os terroristas e racistas como a Ku Klux Klan, ou os revolucionários que se defendiam da violência policial, e mesmo os pacifistas e reformistas. O verdadeiro inimigo do governo americano era a unificação das lutas sociais contra o capitalismo e o imperialismo. Por isso a luta contra a Guerra do Vietnã era um ponto central que unia todas as frações sociais mobilizadas na ebulição dos anos 1960, a esquerda socialista dentro do Partido Democrata, o movimento feminista, o movimento LGBT, o movimento negro pacifista, inclusive os cristãos liderados por Martin Luther King, até o movimento revolucionário dos Panteras Negras.

A maior preocupação de Hoover era rachar esse movimento unificado que poderia ao fim e ao cabo disputar o poder e gerar mudanças profundas na política norte-americana. Por isso era preciso eliminar suas principais lideranças, seja através de atentados realizados pela extrema-direita racista, ou pelos próprios órgãos de segurança do governo. Hoover criou uma verdadeiro Gestapo no coração da “maior democracia do mundo”, que grampeava e chantageava inclusive autoridades de alto escalão que pudessem atrapalhar sua atuação, praticava atentados à bomba e assassinatos. O FBI desde seu início fez parte do aparato de terrorismo de Estado dos EUA.

Nesse contexto, o Hoover cria o COINTELPRO, acrônimo de Counter Inteligence Program, o Programa de Contrainteligência clandestino para realizar operações ilegais contra todas as organizações de esquerda dos EUA, particularmente os Panteras Negras. É no âmbito desse programa ilegal que se dá a infiltração de William O’Neal e outros informantes para subsidiar operações de grampeamentos, invasões, prisões, incêndios e assassinatos. Os ataques às sedes e aos líderes dos Panteras Negras eram coordenados entre o FBI e as polícias locais dominadas pelas seitas racistas.

As acusações de violência e “terrorismo” contra os Panteras Negras eram puro pretexto baseado na ousadia dos negros que exerciam seu direito constitucional de portar armas para se defender, inclusive da polícia racista. A auto-defesa armada dos Panteras Negras era basicamente o ensino da Constituição e das leis criadas pelos próprios brancos defensores do direito de terem armas. Os conflitos armados só ocorriam mediante provocações explícitas da polícia que visava eliminar fisicamente os Panteras Negras diante de seu crescimento na população que buscava a assistência social fornecida pelo movimento.

A história contada pelo filme é muito instigante e dramática. Por si só, o desenrolar dos acontecimentos gera uma ansiedade sobre o sabido final trágico, mas contém alguns momentos monótonos e repetitivos. Muitos diálogos são pouco construtivos tanto da história como da subjetividade dos personagens, apesar das tentativas de mostrar os conflitos internos dos militantes dos Panteras Negras perante uma vida de sacrifícios e perseguições, sem sucesso na minha opinião. Já o conflito interno do infiltrado, que percebe estar sendo usado para fins vis e muito mais violentos do que o suposto “radicalismo” do movimento perseguido, é mais bem trabalhado, mas muito mais pela grande atuação de Lakeith Stanfield do que pela construção do roteiro. Por outro lado, as cenas de ação são muito realistas e chocantes, assim como as cenas de clímax político com os discursos inflamados do carismático Fred Hampton interpretado por Daniel Kaluuya.

Shaka King, Lakeith Sanfield e principalmente Daniel Kaluuya fazem parte de um contexto de consolidação dos negros no alto escalão de Hollywood, que é resultado de um processo de longa duração de influência cultural dos negros no cinema norte-americano. Kaluuya é um dos atores negros mais bem sucedidos da atualidade ao lado do falecido Chadwick Boseman, que protagonizou Pantera Negra, a mega produção da Marvel, e diversos filmes importantes como Destacamento Blood de Spike Lee sobre veteranos negros do Vietnã, Get Up: A história de James Brown, e A Voz Suprema do Blues, seu último filme que estreou após sua morte, no qual atua ao lado de Viola Davis, a atriz negra mais premiada da história.

Nos anos 1970, houve um movimento acadêmico denominado L.A. Rebellion na Escola de Cinema da Universidade da Califórnia que abriu cursos para negros, latinos, indígenas, no espírito das políticas de afirmação, e produziu uma série de curtas e longas metragem na periferia da grande indústria cinematográfica sediada em Hollywood. Por outro lado, havia também o movimento Blaxploitation, com atores e diretores negros que utilizavam esteriótipos tanto dos negros como dos brancos para atrair o dinheiro da indústria para produções de entretenimento baseados em problemas sociais e raciais das grandes cidades americanas. Além disso, o Blaxploitation foi importante para levar ao cinema a música negra em ascensão dos anos 50, 60 e 70, com trilhas sonoras compostas por  James Brown, Quincy Jones, Barry White, Marvin Gaye, etc. É desse contexto que surge Spike Lee com seus sucessos explosivos dos anos 1980 e 1990, e sua posição influente até hoje, tendo ganho um Oscar tardiamente pelo roteiro de Infiltrado na Klan, protagonizado por John David Washington, filho de Denzel Washington, o astro de Malcolm-X e tantos outros filmes de muito sucesso.

No papel de Fred Hampton, Daniel Kaluuya repete o desempenho brilhante do filme Corra! que deu um Oscar para Jordan Peele, um dos mais talentosos diretores negros dessa nova geração herdeira de Spike Lee; como Ava DuVernay que dirigiu Selma sobre Martin Luther King, Olhos Que Condenam sobre os Cinco do Central Park condenados injustamente, e o documentário 13ª Emenda sobre o sistema penal e a segregação nos EUA; Barry Jenkins, que venceu o Oscar por Moonlight; e é claro Ryan Coogler, produtor de Judas e o Messias Negro, e que tem dirigido blockbusters protagonizados por negros como Pantera Negra da Marvel e Creed, sequência da história de Rocky Balboa.

Apesar de não ser uma das melhores obras desse contexto, Judas e o Messias Negro é um bom filme que conta de forma competente uma história incrível, com destaque para a atuação de Daniel Kaluuya, que traz de volta o carisma e a força de Fred Hampton, um jovem e genial líder político de sua época perseguido pela poderosa máquina de repressão do Estado norte-americano.