Ken Loach explica, no cinema, o capitalismo e o neoliberalismo

Ken Loach explica o capitalismo e o neoliberalismo no cinema daniel blake você não estava aqui
Daniel Blake e Ricky Turner, os dois incríveis personagens de Ken Loach
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O cineasta britânico Ken Loach de 83 anos abriu um canal no YouTube e disponibilizou vários de seus filmes gratuitamente na plataforma de vídeos (https://www.youtube.com/user/KenLoachFilms).

Motivado por essa descoberta fui atrás de um texto que escrevi em janeiro de 2017 na plataforma de textos Medium, antes da existência deste Portal Disparada, sobre um filme de Loach. Retomo esse texto para prestar homenagem a este grande artista que parece colocar o denso livro “O Capital” de Karl Marx em forma de cinema para ser apreciado como arte.

O texto tratava do filme de Loach chamado “Eu, Daniel Blake” de 2016, e dei o título de “Eu, o capitalismo”. Impactado pela experiência sinistra do filme que tratava do desmonte do poderoso sistema de seguridade social da Inglaterra após a ascensão do neoliberalismo pós-fordista, busquei analisar como a personalidade dos indivíduos é esmagada pela “personalidade” do capital. O cineasta consegue demonstrar como as estruturas do capitalismo “assujeitam” as pessoas em “sujeitos de direito”, tema caro à teoria marxista do Direito, e como esses direitos subjetivos variam violentamente em cada período histórico, pois a acumulação capitalista e sua regulação tomam diversas formas diferentes ao longo da história.

Soma-se a essa reflexão mais um filme de Ken Loach, “Você Não Estava Aqui” de 2019, que trata de outro aspecto do capitalismo em sua fase caracterizada pelo pós-fordismo. Se “Eu, Daniel Blake” tratou de temas como aposentadoria, seguro-saúde e assistência social, ou seja, da rede de proteção social inglesa vilipendiada pelo neoliberalismo, “Você Não Estava Aqui” trata das estruturas econômicas flexíveis do pós-fordismo neoliberal. O filme mostra como as novas dimensões tecnológicas transformam as relações de trabalho deixando-as tanto mais violentas quanto menos aparentes. Evidentemente os temas dos dois filmes se misturam, procuro aqui apenas apontar qual a ênfase discursiva de cada um.

Tanto o protagonista de “Eu, Daniel Blake”, que leva o nome do título, como o de “Você Não Estava Aqui”, Ricky Turner, são personagens complexos que cativam o público em suas desventuras contra as estruturas do capital. Eles são interpretados por Dave Johns e Kris Hitchen respectivamente, cujas atuações deixam o espectador sem fôlego. A atuação de Hayley Squires como Katie Morgan, a amiga de Daniel Blake, é de partir o coração com as humilhações que a mãe solteira passa para dar de comer aos seus filhos tendo de se prostituir ou roubar abrigos que distribuem cestas básicas. Debbie Honeywood no papel de Abbie Turner, a esposa de Ricky em “Você Não Estava Aqui”, nos faz arrepiar lutando para manter a família unida enquanto também vai ao seu emprego flexível ultraprecarizado. Destaque para os filhos do casal Turner, Seb e Liza Jane, interpretados por Rhys Stone e Katie Proctor, que dão uma dimensão especial de como as crianças e adolescentes são afetados pela precarização do trabalho dos pais ao mesmo tempo em que o sistema educacional tradicional do Estado não dá mais conta de lidar com a juventude permanentemente conectada na internet em seus smartsphones.

O drama, a violência, os dilemas éticos, os afetos, do egoísmo à epifania do altruísmo, da raiva à compaixão, do rancor ao perdão movido pelo mais profundo amor, da coragem ao arrependimento, da revolta à resignação. A comédia e a tragédia. Esteticamente está tudo lá, com excelência no roteiro, direção e atuação. Não sou um especialista nem em cinema, nem na obra de Ken Loach. Mas considero que esses dois filmes representam um retrato cinematográfico da mais sofisticada teoria social sobre o capitalismo e o neoliberalismo.

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Daniel Blake e Ricky Turner, os dois incríveis personagens de Ken Loach

Em seguida, coloco minha reflexão original sobre “Eu, Daniel Blake”, mas que penso ser suficientemente abrangente sobre o contexto histórico, econômico, político e social, exposto também em “Você Não Estava Aqui”.

***

Eu, o capitalismo

filme britânico “Eu, Daniel Blake” é um retrato romântico dos estertores do Estado de Bem-Estar Social da Inglaterra, após a Terceira Revolução Industrial, a globalização e o neoliberalismo. Romântico não no sentido vulgar, mas no sentido literário e pessimista de Goethe e Lord Byron da Primeira Revolução Industrial. Ao invés do suicídio ou da tuberculose, o suplício do personagem principal é a busca pela assistência social num país do centro do capitalismo industrial já sem indústrias.

Um carpinteiro viúvo e sem filhos, após sofrer um enfarte, busca o auxílio doença do governo devido à restrição médica ao trabalho. Em busca da renda mínima necessária para a sobrevivência humana no capitalismo, ou seja, pagar o aluguel, a conta de luz, as roupas e a comida, a saga de Daniel Blake é marcada por muitos elementos violentos que caracterizam a atual configuração da sociedade capitalista.

Blake é um homem idoso não habituado a usar o computador e a internet, única forma de acessar e enviar os formulários necessários para seu procedimento. As regras para a obtenção de auxílio doença são definidas arbitrariamente sem levar em conta a prescrição médica, e o serviço de avaliação física oficial é privatizado, realizado por uma empresa estrangeira de forma bizarra pelo telefone. As normas para o seguro-desemprego não são menos absurdas, jogando o trabalhador num labirinto sem saída.

Outros personagens do filme também sofrem os efeitos do novo tempo que chegou para a primeira potência industrial do mundo. A desindustrialização também atinge os jovens. Os empregos que seus pais costumavam ter, como numa fábrica de calçados, já não existem.

A inventividade se une à aceleração da comunicação e do transporte, num misto de empreendedorismo e informalidade, para importar ilegalmente mercadorias produzidas do outro lado do mundo. E a face mais perversa da globalização do preço da força de trabalho é a submissão cada vez maior à precarização dos serviços e o sufocado consentimento com a humilhação e perda da dignidade em troca de dinheiro.

No filme não há vilões maléficos orquestrando os apuros de Blake e seus amigos. São normas, regulamentos, rotinas e máquinas. É uma complexa estrutura abstrata, a qual todos apenas obedecem, criadora de terríveis humilhações às pessoas comuns da Inglaterra do século XXI. Mas o filme não deixa de mostrar elementos subjetivos essenciais de sobrevivência, resistência e em alguma medida de subversão: a solidariedade, a criatividade e a indignação. Por trás da violência das relações sociais impostas, as pessoas se ajudam, material e emocionalmente.

Na verdade, Daniel Blake é vítima de uma transição histórica para a qual sua geração não estava preparada. As novas gerações, por outro lado, crescem já tendo de lidar com as condições francamente adversas perante as da metade do século passado. Estabilidade no emprego, previdência e assistência social, serviços públicos amplos e distribuição de renda. Essas são enormes conquistas da classe trabalhadora que havia forjado relevante participação popular no poder político e consolidou aquilo que se convencionou chamar de Estado do Bem-Estar Social.

Esse conjunto de direitos sociais tornou-se parte da regulação geral do sistema capitalista nos países desenvolvidos em meados do século XX. Foi uma transformação profunda. Em relação à barbárie das fábricas inglesas do século XIX descritas por Marx n’O Capital, o Estado do Bem-Estar Social pode ser visto como um avanço civilizatório. Mas Daniel Black se dá conta, atônito, de que esse mundo, sólido como era, se desmancha no ar.

A regulação baseada no Bem-Estar Social só era possível pois havia um regime de acumulação do capital fortemente baseado no trabalho industrial em larga escala e no consumo da classe trabalhadora possibilitado por salários mais altos e estáveis. Além disso, havia uma ordem econômica mundial baseada num sistema de Estados nacionais que condicionavam seu comércio externo de acordo com as necessidades de suas empresas e trabalhadores.

Esse regime de acumulação fundado na produção industrial e consumo nacional, e seu modo de regulação baseado em pleno emprego e numa ampla rede de assistência social, após três décadas de estabilidade, entraram em crise. Os economistas ortodoxos rapidamente “explicaram” tudo. Os gastos sociais do Estado e o poder dos sindicatos geraram a inflação que corroeu os salários. O consumo caiu e gerou a recessão que destruiu os lucros. As empresas faliram ou diminuíram sua atividade, gerando enorme desemprego, o que pressionou muito a assistência social, e o Estado ficou profundamente endividado. Esse é o resumo discursivo que se tornou hegemônico para a descrição da virada do capitalismo nos anos 1970/80.

A saída para a crise, segundo a hegemonia neoliberal estabelecida nos anos 1980/90, era privatizar os serviços públicos para submetê-los à eficiência da concorrência e diminuir as despesas estatais. Cortar gastos com assistência social e estabelecer um Estado mínimo, com apenas os serviços essenciais que o mercado não puder suprir. Além de manter a ordem através do poder de polícia. O planejamento estatal deve ser substituído pelo espontaneísmo do mercado, e o Estado nacional deve dar lugar à globalização como motor do desenvolvimento.

Após três décadas de globalização e neoliberalismo, o que se viu foi a maior concentração de renda da história do capitalismo. O setor financeiro comanda os fluxos de investimento pelo mundo inteiro buscando dividendos com os maiores juros e menores prazos possíveis, e os detentores de propriedade intelectual ficam com a maior parte da renda produzida a custos baixíssimos por suas filiais nos países periféricos.

O desemprego causado pela diáspora industrial rebaixa os salários, propiciando uma precarização no setor de serviços que remete à época das jornadas de trabalho do século XIX. Mas não há mais a assistência social que diminuía a pobreza. O Bem-Estar Social deve ser sacrificado para que o Estado tenha recursos para remunerar os investidores financeiros que compram títulos da dívida pública.

O personagem principal do filme se revolta e declara “Eu, Daniel Blake sou cidadão e exijo meus direitos”, sem perceber que sua própria subjetividade cidadã na verdade não é sua, é dele, do capitalismo. Sua capacidade de se autorreferir como sujeito de direito, na verdade é a capacidade do capital de comprar a sua força de trabalho, pelo preço definido no mercado. Na globalização neoliberal, a eficiência do mercado é medida pelo preço mais baixo que conseguir colocar nessa peculiar mercadoria, e, portanto atrair os investimentos financeiros.

O século XXI começa marcado pelos últimos suspiros de uma sociabilidade capitalista da qual a classe trabalhadora, contraditoriamente tem nostalgia. As condições materiais para aquele modo de regulação já não existem mais, o desenvolvimento tecnológico, o aumento brutal da produtividade industrial que requer cada vez menos mão de obra, e as redes de comunicação e transportes que derrubam as barreiras físicas entre as pessoas e nações, são irreversíveis.

Mas a hegemonia neoliberal da globalização já não consegue mais dar conta de explicar – e muito menos de resolver – o colossal aumento da pobreza, miséria e violência do mundo inteiro. Principalmente porque agora atinge também seus centros impulsionadores, como os Estados Unidos, a Inglaterra de Daniel Blake e o restante da Europa. O futuro não poderá ser o que sonha a nostalgia do Estado do Bem-Estar Social, tampouco poderá ser o presente que o está destruindo. Mas se a humanidade não está presa numa jaula de aço rumo ao colapso, com certeza o futuro será construído pela indignação, solidariedade e criatividade como as dos personagens de “Eu, Daniel Blake”.

  1. Muito bom o artigo de Luiz Roque.As limitações de espaço de texto tanto do autor quanto comentários, impedem evidedentemente, avançar no debate.Apenas uma ressalva que julgo importante-e que justamente não há espaço à qual me refiro- é que o chamado “Estado do bem estar social”, não surge por um avanço civilizatório, mas antes de mais nada para domesticar a classe trabalhadora , através do “ganho de direitos” e com isso impedir a revolução das classes trabalhadoras, rumo a uma sociedade sem classes que era é ainda o objetivo da verdadeira revolução.Daí o “sujeito do direito” entra na cena política,ao invés do sujeito de classe revolucionária.Ė nessa, a inevitável ,e cada vez mais, que se dá e dará a inevitável decadência do Estado do bem estar social, como se torna evidente no presente histórico.No mais ,excelente artigo!

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