Lélia Gonzalez: Clássico do pensamento brasileiro

Da mesma forma que Angela Davis apontou a contradição de raça, classe e gênero nos Estados Unidos desde a colonização, Lélia Gonzalez apresentou muitos trabalhos e artigos a respeito da formação da identidade nacional brasileira com a centralidade dos negros, em especial, das mulheres negras.
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Lélia de Almeida nasceu em 1º de fevereiro de 1935, em Belo Horizonte, em uma família pobre, mudando-se aos sete anos de idade com o irmão Jaime de Almeida para o Rio de Janeiro, ao aceitar o convite para jogar futebol no Flamengo.

Apesar das dificuldades de expor a importância dos estudos aos seus familiares, que entendiam apenas a necessidade de cursar o curso primário e conseguir emprego para contribuir com o custeio de todos, Lélia ultrapassou mais essa barreira e chegou à universidade, acumulando o trabalho com os estudos.

A história de muitas mulheres negras no Brasil que conseguem cursar o ensino superior também é atravessada pelo acúmulo de responsabilidade do custeio familiar com os estudos, pois a maioria da população negra ainda está em situação de vulnerabilidade social e econômica. Lélia Gonzalez, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e tantas outras mulheres não fugiram dessa realidade, o que evidencia um mérito ainda maior em ocuparem a academia.

Lélia se graduou em História, Geografia e Filosofia, obteve os títulos de mestrado em Comunicação e doutorado em Antropologia Social, tudo pela Universidade de Guanabara, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), constatando grandes contradições nas relações sociais, que inclusive confrontavam sua própria formação, que foi pautada na compreensão do colonialismo.

Lélia Gonzalez adotou o sobrenome do marido, Luiz Carlos Gonzalez, após o casamento, em 1964. Este era um homem branco e espanhol, e sua família não aceitava a união com Lélia, que afirmou que “a família do meu marido achava que o nosso regime matrimonial era, como eu chamo de ‘concubinagem’, porque mulher negra não se casa legalmente com homem branco; é uma mistura de concubinato com sacanagem, em última instância. Quando descobriram que estávamos legalmente casados, veio o pau violento em cima de mim; claro que me transformei numa ‘prostituta’, numa ‘negra suja’ e coisas assim desse nível” (GONZALEZ, 1994, p. 383-384). Luiz Carlos rompeu relações com sua família diante das práticas racistas contra sua mulher.

Em 1965, Luiz Carlos se suicidou, mas o curto relacionamento foi suficiente para que Lélia evidenciasse os mitos da democracia racial no Brasil. Lélia Gonzalez talvez tenha mantido o sobrenome do falecido marido como uma forma de resistência à opressão que sofreu e, a partir de 1965, suas pesquisas e conhecimentos foram destinados a entender o racismo na sociedade brasileira, com mais ênfase em relação à mulher negra, invisibilizada pela História Oficial.

Nesse período, Lélia Gonzalez toma consciência do processo de embranquecimento ideológico a que foi submetida durante sua vida, e afirma que sua mãe, índia e analfabeta, “era uma mulher do povo” e que tinha “sacação da realidade política em que vivíamos”.

Da mesma forma que Angela Davis apontou a contradição de raça, classe e gênero nos Estados Unidos desde a colonização, Lélia Gonzalez apresentou muitos trabalhos e artigos a respeito da formação da identidade nacional brasileira com a centralidade dos negros, em especial, das mulheres negras.

Lélia Gonzalez afirmou que o Brasil fala “pretuguês”, diante da mistura das línguas dos africanos escravizados com a do escravizador português. “Se a gente levar em consideração, por exemplo, a atuação da mulher preta, chamada ‘mãe preta’, que o branco quer adotar como exemplo do negro integrado, que aceitou a democracia etc. e tal, ela, na realidade, tem um papel fundamental como sujeito, suposto saber nas bases mesmo da formação da cultura brasileira, na medida em que ela passa, ao aleitar as crianças brancas e ao falar o seu português (com todo um acento de Kimbundo, de Ambundo, enfim, das línguas africanas), é ela que vai passar pro brasileiro, de um modo geral, esse tipo de pronúncia, um modo de ser, de sentir e de pensar” (GONZALEZ, 1994, p. 385).

Os espaços também eram divididos, a ponto de Lélia Gonzalez combater a falácia de que no Brasil não existe racismo, apontando semelhanças com a condição do negro na África do Sul, porque “a polícia brasileira ataca as favelas, invade as casas das pessoas, rouba os objetos das famílias e, vejam, a questão do desemprego, da própria crise econômica brasileira, como ela é articulada com o racismo” (GONZALEZ, 1994, p. 385).

Também narrou que “da senzala às favelas, cortiços, porões, invasões, alagados e conjuntos ‘habitacionais’ (cujos modelos são os guetos dos países desenvolvidos) dos dias de hoje, o critério também tem sido simetricamente o mesmo: a divisão racial do espaço” (GONZALEZ; HASENBALG, 1982, p. 15).

No artigo “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Lélia Gonzalez afirma a dupla discriminação sofrida pelas mulheres que é o fenômeno do racismo e sexismo, ao mesmo tempo em que a consciência e a memória são atravessadas pelo saber, desconhecimento e discursos ideológicos que são reproduzidos até os dias de hoje.

A autora afirma que os papéis destinados às mulheres negras e reproduzidos com naturalidade e normalidade são resultado do racismo que inferioriza os negros, e do sexismo e patriarcalismo pelos quais se entende que as mulheres devem se limitar a serviços alinhados ao cuidado, sempre sem acesso ao público, ou seja, escondidas nas cozinhas, nas áreas de serviço e nas lavouras.

A autora também mostra a falácia da democracia racial no carnaval, porque as mulheres negras só se tornam rainhas nesse período, ao passo que no dia seguinte os corpos negros regressam à condição de alvos das arbitrariedades policiais, do desemprego e da falta de acesso à saúde e à educação.

A gente sabe que carnaval é festa cristã que ocorre num espaço cristão, mas aquilo que chamamos do Carnaval Brasileiro possui, na sua especificidade, um aspecto de subversão, de ultrapassagem de limites permitidos pelo discurso dominante, pela ordem da consciência. Essa subversão na especificidade só tem a ver com o negro. Não é por acaso que nesse momento, a gente sai das colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela tevê, pelo cinema e por aí afora. De repente, a gente deixa de ser marginal prá se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do encanto especial do povo dessa terra chamada Brasil (GONZALEZ, 1984, p. 239).

Os dados econômicos de 1980-1990 apontaram a condição de subalternidade em que os negros estavam submetidos, assim como a permanência da apartação racial no Brasil. “Portanto, o desenvolvimento econômico brasileiro, enquanto desigual e combinado, manteve a força de trabalho negra na condição de massa marginal, em tempos de capitalismo industrial monopolista, e de exército de reserva, em termos de capitalismo industrial competitivo (satelitizado pelo setor hegemônico do monopólio)” (GONZALEZ, 1984b, p. 3)

Não há como esgotar, neste pequeno espaço, a profundidade do conhecimento e da produção acadêmica da Lélia Gonzalez, uma mulher negra, doutora, intelectual, poliglota e ativista, sempre em favor da democracia, e sensível às desigualdades estruturais da sociedade. Ela participou dos principais grupos e movimentos negros como Movimento Negro Unificado (MNU), o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e o Coletivo de Mulheres Negras Nzinga.

O Coletivo de Mulheres Negras NZinga foi fundado em 16 de julho de 1983, a partir da necessidade de se atender à complexidade da realidade das mulheres negras, que levou, como delegadas, mulheres negras para um congresso no exterior. O nome Nzinga é uma homenagem à Rainha Jinga (Nzinga), que “teve um papel da maior importância na luta contra o opressor português em Angola. E o pássaro que usamos como símbolo tem a ver com a tradição nagô, segundo a qual, a ancestralidade feminina é representada por pássaros.

E nossas cores têm a ver, o amarelo com Oxum, e o roxo com o movimento internacional de mulheres”. Ou seja, tanto o nome quanto os projetos do Nzinga têm a finalidade de resgate à ancestralidade africana.

Em 25 de março de 1984, foi organizado um evento no Morro do Andaraí, em comemoração e conscientização a respeito do dia 08 de maço (Dia Internacional da Mulher) e 21 de março (Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial), e no panfleto de divulgação tinha o seguinte trecho:

“Somos um Coletivo: não aceitamos que a arbitrariedade de uma hierarquia autoritária determine nossas decisões, mas que elas sejam o resultado de discussões democráticas. Somos um Coletivo de Mulheres porque lutamos contra todas as formas de violência, ou seja, lutamos contra o sexismo e a discriminação sexual. Somos um Coletivo de Mulheres Negras: além do sexismo, lutamos contra o racismo e a discriminação racial que fazem de nós o setor mais explorado e mais oprimido da sociedade brasileira (…) Nosso objetivo é trabalhar com as mulheres negras de baixa renda (mais de 80% das trabalhadoras negras), que vivem principalmente nas favelas e nos bairros de periferia. E por quê? Porque são discriminadas pelo fato de serem mulheres, negras e pobres”.

Lélia Gonzalez morreu aos 59 anos, em 1994, de infarto, e até o fim de sua maravilhosa vida em favor da igualdade racial e de gênero, ela nunca desistiu do sonho de uma sociedade brasileira diferente e democrática. Lélia Gonzalez nos deixou o legado da luta contra o racismo e sexismo.

Angela Davis, mulher negra, intelectual, reconhecida mundialmente por sua luta pela liberdade, com destaque para sua obra Mulheres, Raça e Classe (2016), disse em sua visita ao Brasil em 2019: “Eu acho que aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês, comigo”.

Referências:
– GONZALEZ, Lelia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
– GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpoc, 1984, p. 223-244.
– GONZALEZ, Lélia. Mulher Negra, 1984 b, p. 1-13.
– GONZALEZ, Lélia. Lélia fala de Lélia. Revista de Estudos Feministas, v.2, n. 2, 1994. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16220/14767. Acesso em: 1º fev. 2020.