A necessária máquina de guerra individual e coletiva

A necessária máquina de guerra individual e coletiva
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Peter Pál Pelbart tem razão quando afirma que a nova estratégia do neoliberalismo são as múltiplas guerras de subjetividades (Ensaios do Assombro, São Paulo: n-1 edições, 2019). Estratégia que pretende falsear a realidade espalhando por aí a ideia privatista de que o problema não são as lutas de classes, nem a exploração do capitalismo. Que tudo seria um conflito de narrativas do multiculturalismo.

Recentemente uma querida amiga observou que eu venho usando a expressão “máquina de guerra” de forma inadequada quando falo do impulso de escrever textos como este. Que meus escritos, disse ela, não ameaçam ninguém. E que máquina de guerra seria se fosse no caso da atuação organizada em partido político ou outro tipo de ação mais ousada e atrevida, a exemplo dos posts do ator José de Abreu no Twitter.

De fato, certamente, meus escritos não ameaçam ninguém. Não há aqui a pretensão do micro influenciar no macro. Entretanto, micro e macro estão interpenetrados em diferentes níveis do cotidiano, cada um na sua escala, independente, ao lado ou em conjunto com ações organizadas. Sem pretensão, sobretudo, consciente da minha condição não orgânica em partido político.

Invejo, com aquele sentimento benfazejo da admiração, os militantes partidários. Importante lembrar, porém, que a especialização resultante da burocratização das relações sociais no capitalismo trouxe os mesmos dilemas propiciados tanto pelo binômio hipócrita da liberdade-igualdade burguesas como pela reificação stalinista do marxismo. Daí a pertinência da observação do historiador Eric Hobsbawn, para quem existem diferentes marxismos e, consequentemente, os conflitos teóricos para saber quem é mais marxista.

Entretanto, sem dúvida algum, desde o século XIX, o partido político ainda é o príncipe (gramsciano) legitimado dessa democracia que vivemos. Isso, mesmo que não acreditemos mais na institucionalidades burguesas baseadas na ideia iluminista de fim da história para formas possíveis de representação.

Há que se reafirmar, assim, que vivemos a representação política do tipo burguesa ainda – com todas as suas contradições. Ditadura do proletariado e democracia liberal têm um dilema em comum em relação ao indivíduo, por motivos e estratégias diferentes: como incentivar ou impedir a livre expressão e a criatividade das pessoas. Um se coloca como “ditadura” (palavra terrível) para libertar o indivíduo. O outro como liberal (que não é nada libertário) para camuflar a reificação e a diminuição das pessoas.

Nesse sentido, sobre o impulso de escrever por mim mesmo, em meu nome, com todos os riscos do vazio, sem retorno (sem leitura dos outros), me vem à lembrança a reflexão de Marilena Chauí. É a prepotência do “discurso competente” de nossa sociedade, mais ou menos assim: quem é você para falar o que está falando, sobre esse assunto, por qual motivo, nesse momento e nesse lugar?

Ora, a canção de Chico Buarque do início da década de 1970 é pertinente em relação ao tema desde sempre. Mais ainda com ditadura, como era na época, porém também com democracia liberal ou ditadura do proletariado: “Ninguém / Ninguém vai me acorrentar / enquanto em puder cantar / enquanto eu puder sorrir / Ninguém / Ninguém vai me ver sofrer / Ninguém vai me surpreender / Na noite da solidão / Pois quem / Tiver nada pra perder / vai formar comigo o imenso cordão / E então / Quero ver o vendaval / Quero ver o Carnaval / Sair (…).

Vejam: também não falo a partir de nenhum “lugar de fala”. Repito e concordo com Marcos Risério: meu lugar de fala é o Brasil. E minha pretensão é falar somente para estarmos e fazermos algo juntos. Só sou o que sou por estar acompanhado dos outros. Lukács diz: o ser humano é o ser que responde. Mudo eu não vou ficar nunca!

A experiência da escrita não é para qualquer um, mas poderá ser para todos algum dia, como metáfora da liberdade de qualquer tipo ou forma de expressão, usando ou não a palavra. Não é para qualquer um, não no sentido elitista, de algo especialíssimo, segundo o qual só doutos, gênios, escritores, jornalistas ou o que sejam sabem e possam escrever. Mas, sim, no sentido da entrega de si durante o movimento de se transformar no momento em que se escreve e se torna público.

Umberto Eco disse, de forma aguda, que, dentre outras coisas, a internet deu voz a uma multidão de imbecis. Devemos acrescentar que as tecnologias da informação e comunicação permitiram também que outra multidão de não imbecis, sem ser especialistas em qualquer coisa, e não organizados em partidos políticos, possam dizer e trocar coisas interessantes e inteligentes.

Daí a expressão máquina de guerra, na minha humilde escala, tomada de um empréstimo deleuziano-guattariano, a fim de não resumir minha condição de vida à passividade de um simples consumidor, mesmo que seja um consumidor de “produtos” intelectuais supostamente mais bem esclarecidos. Ou mero consumidor de ideias orgânicas de instâncias macro.

De início essa máquina de guerra é para isso mesmo: não morrer no meio do caminho, isto é, não ficar paralisado só recebendo e repassando coisas. Contra a reificação. Podendo até ser organizado em partido político, mas não com a individualidade subsumida a ele. Não como gaiola de ferro oligárquica, como já apontou Robert Mitchels, valendo isso para organizações de direita ou de esquerda.

Não se trata também apenas de lavratura para marcar a própria imagem. Muito menos deixar algo para os pósteros, que virão com coisas muito mais interessantes talvez. Tem ainda esse caráter de procura. Escrever é pesquisar também, sobrepor-se ao que já se tem de conhecimento e indagar e querer mais.

Máquina de guerra, embora individual e humilde, contra o vazio das múltiplas guerras de subjetividades que o neoliberalismo sempre reforça para se legitimar. Guerra contra mim mesmo, contra o desânimo e contra a acomodação do horário nobre. Contra o costume reificado e cotidiano de achar que não podemos ser de outra forma. Guerra contra o nosso cansaço imposto de fora – contra, enfim, a ideia de que sozinhos, privatizados, podemos mudar essa merda toda em que se transformou o Brasil.

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