Marcelo Adnet no Roda Viva e a teocracia liberal

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Curiosamente, a entrevista desta última segunda-feira no Roda Viva repercutiu mais por uma pergunta de um entrevistador que pelas respostas do entrevistado. A fala colocou a palavra “Cuba” entre os trending topics do Twitter por quase um dia inteiro, depois da bombástica revelação do jornalismo da TV Cultura de que não existem humoristas na ilha caribenha.

A informação foi dada na primeira pergunta que Marcelo Tas endereçou ao entrevistado. Após se queixar de que, para a esquerda, ele era considerado um direitista pelas denúncias de colaboração com o governo dos EUA expostas pelo Wikileaks, Tas interpelou Marcelo Adnet com a seguinte indagação:

“O que eu acho muito perigoso nessa polarização é a gente entrar nessa cilada. Sabe? E quando você fala que você é um humorista de esquerda… você nunca reparou que, por exemplo, em Cuba não existe humorista? Ou na China não existe humorista? Eu acho muito perigoso a gente, como pessoas que trabalham com humor, tomar um partido, especialmente quando o humor é censurado, né?… no caso de Cuba, que é um país muito triste.”

Adnet começou bem a resposta, perguntando se humorista deveria então ser de direita e se Tas julgava que a Libéria, por exemplo, era um bom ambiente para o humor. Mas não resistiu muito. Ao fim da fala, teve que admitir que não apoiava os regimes de Cuba e da China, que seriam comunistas, e ele, Adnet, seria apenas um bem-intencionado progressista que simpatizava com o regime político da Nova Zelândia. E com a alma purificada pela genuflexão diante do altar liberal, segui-se a entrevista sem mais transtornos para que todos pudessem debater o lugar de fala do humorista branco, hétero e rico, como o próprio Adnet se classificou.

Esse é um ritual comum em entrevistas. É de esquerda?!: “E Cuba?”, “E a Venezuela?, “E a Coréia do Norte?”. Seria uma pauta jornalística legítima nas proximidades de uma revolução armada ou se estivéssemos às vésperas de um bem-comportado plebiscito para decidir se seguimos com o nosso capitalismo colonial ou se adotaremos o sistema econômico Juche a partir do próximo mês. Ao que eu saiba, ambas as hipóteses são menos prováveis que a colonização de Marte.

Marcelo Adnet ainda ensaiou uma tímida reação a esse infecundo debate geográfico com o seu: “E a Libéria?”. Mas a maioria, para não perder votos, ou para evitar aborrecimentos, se ajoelha de pronto para expiar seus pecados e receber o misericordioso perdão. Alguns poucos, seja por disciplina partidária, seja por burrice, se dispõem a defender o satanás do credo liberal diante de um padre com o microfone na mão. Uma derrota certa sob as bênçãos de Santa Hannah de Arendt.

Sempre que assisto à esse ato litúrgico de fins tão previsíveis, me lembro de Guerreiro Ramos. Em 1968, exilado nos EUA, um Guerreiro amargurado e perturbadoramente realista escreveu um texto, intitulado “O Colapso do Nacionalismo no Brasil”, em que avalia as consequências do Golpe de 1964, que ele assistira tão de perto. Pessimista em relação ao futuro do país, Guerreiro Ramos vaticina que “o nacionalismo provavelmente se tornará uma força muito residual. Naturalmente, haverá nacionalistas durante os anos vindouros no Brasil, mas somente para manter aceso o testemunho da extinção do nacionalismo como um movimento político significativo no Brasil.”[1]

Pois cá estamos nós, solitárias testemunhas de Guerreiro Ramos 50 anos depois, perplexos diante do monótono ritual sacro dos bárbaros liberais. Minoritários no debate público, sem representação nos grande órgãos de mídia, nem nos pequenos, raros na Academia e na política, já não nos espanta a rendição sem luta da esquerda, para a qual ‘imperialismo’, ‘soberania’, ‘interesse nacional’, ‘subdesenvolvimento’ e ‘dependência’ são só palavras com valor estético.

Com seu Vaticano radicado em Nova York e sua Constantinopla em Paris, a igreja liberal unificada catequiza a passos largos todEs os bem-aventurados e as bem-aventuradas do civilizado mundo ocidental. Liberdade, democracia e civilização contra escravidão, totalitarismo e barbárie. Quem seria capaz de blasfemar contra a santíssima trindade do liberalismo dizendo que liberdade sem condições concretas de exercê-la, democracia em regime colonial e civilização numa sociedade de massas crescentemente desigual e financeirizada é só ideologia montada para 1% da população mundial esfolar os outros 99%? Vade retro!!

Guerreiro Ramos sabia que não somos franceses, estadunidenses, alemães, suecos ou neozelandeses. Mas também sabia que não somos cubanos, russos ou chineses, como disse em seu polêmico artigo, Revolução Brasileira ou Jornada de Otários?, de 1963: (…) temos interpretações do problema brasileiro acomodado à visão soviética, à visão chinesa, à visão cubana. A crise brasileira é também crise de cultura política.”[2]

O Brasil é um gigante continente, capaz de alterar o destino da humanidade se conseguir ter o seu próprio destino nas mãos. Por isso, ao invés de emanar impotente solidariedade aos oprimidos do mundo – que mais serve para apaziguar o ego pequeno-burguês que para mudar a realidade concreta daqueles que sofrem opressões –, o brasileiro tem nas mãos a arma que pode libertar de fato a humanidade: o Brasil.

Esse fardo, que não repousa sobre as costas de um uruguaio, por exemplo, vivendo em seu simpático e pequenino país, impõe aos brasileiros responsabilidades insuportáveis à sensibilidade da classe média cosmopolita de esquerda. E é com a instrumentalização dessa sensibilidade, e de suas culpas e hipocrisias decorrentes, que a igreja liberal disciplina seu rebanho, protegendo-o do pecado e da tentação.

É óbvio que o interesse nacional de um país periférico e gigantesco como o nosso é um mundo multipolar com o maior caos possível nos centros imperialistas em disputa. Essa frase herética, que provocaria possessões demoníacas em plena missa liberal, permitiria responder de forma direta e sem tergiversações questões sobre Cuba, Venezuela, Nicarágua, China, Coréia do Norte (e do Sul), Rússia, Irã, Trump, Biden, Obama, Hillary, Le Pen, Salvini, Kadafi, Saddam, Trudeau, Merkel, Lukashenko, Brexit, Palestina, Catalunha, Malvinas etc etc etc.

Mas os excomungados não opinam e o iluminismo nacionalista, único capaz de destruir a teocracia liberal, foi para a fogueira da Inquisição. Sem Getúlios e Brizolas – os Voltaires das luzes nacionais –, o obscurantismo reina sobre nós e o arrebatamento será a dissolução do país. Que Guerreiro Ramos esteja errado em seu vaticínio.

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[1] https://jornalggn.com.br/politica/o-colapso-do-nacionalismo-no-brasil-por-alberto-guerreiro-ramos/

[2] RAMOS, Alberto Guerreiro. “Revolução Brasileira ou Jornada de Otários?”. In: Mito e Verdade da Revolução Brasileira. Florianópolis: Insular, 2016. p. 242