Messi, a Copa e o jornalismo que torce e distorce

Messi com a mão no rosto lamentando uma derrota
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A poucos dias do início do mundial finalmente parece que as pessoas começam a entrar no clima da Copa. Nas ruas já se vê algumas bandeiras, ainda tímidas; nas redes sociais alguns já se perguntam se a Seleção brasileira tem chances, se o Neymar vai chegar recuperado, se a Alemanha vai estar tão forte como no último mundial; nos jornais já aventam quais serão as surpresas, as zebras e, é claro, se a Argentina finalmente ganhará a Copa e se com ela Messi quebrará o tabu de não ter nenhum título na seleção principal dos hermanos. E aí eis um assunto que em parte da imprensa esportiva e sobretudo aqui no Brasil virou tabu: questionar Messi e lhe cobrar qualquer coisa.

Fernando Calazans, ex-comentarista da ESPN nos bons tempos da emissora, costumava dizer que se Zico não ganhou a Copa o azar era tão-somente da Copa. Muitos ainda citavam pra referende-lo em seu argumento o fato de outros tantos grandes jogadores terem encerrado suas carreiras sem ter conseguido ganhar um mundial conquanto vários outros de valor técnico inferior galgaram êxito. E há muitos craques espetaculares que não ganharam, sem dúvida. Mas também não há dúvida de que todos eles gostariam de ter sido campeões mundiais e que com tal conquista suas carreiras seriam maiores do que foram.

E aí está: não ganhar a Copa não torna a carreira de ninguém menor do que ela é, do que aquilo que foi construído. Isso ninguém apaga. Mas não conseguir ganhá-la reduz o potencial de transcender e ser ainda maior. Para ficar no caso do Zico, ainda que tenha sido um dos grandes nomes do futebol brasileiro, internacionalmente o ex-meia do Flamengo é menos conhecido que Pelé, Ronaldo, Romário e, sob certas circunstâncias, até que Garrincha e Rivellino. Por quê? Porque não ganhou uma Copa com a Seleção. Tivesse vencido e sido protagonista, como era naturalmente em 1982, é provável inclusive que comparações com Maradona fossem muito mais comuns do que são. E elas seriam bem justas.

Mas por que cobrar do Messi um desempenho melhor pela sua seleção e dizer que falta algo para a sua carreira gera tanta ojeriza? Porque é vendido um discurso que para o argentino não falta mais nada, que sua carreira é completa. Vencer com a Argentina e ganhar a Copa não importa consoante esse discurso, porque ele já teria feito tudo. Logo quando se cobra essa conquista os seus fãs, entre os quais muitos empunhando microfones, reagem como se estivéssemos tirando algo do craque argentino. Afinal se ele tem tudo, pra quê precisa provar algo mais e ter alguma outra coisa? Qualquer questionamento aqui sempre subtrai.

O desempenho do argentino pela sua seleção virou um enorme elefante na sala. Como é impossível ignorar, as desculpas são as mais variadas, tanto em diversidade quanto em qualidade: há algumas que fazem realmente algum sentido, como a de que nem sempre teve times muito organizados e bons à sua disposição embora com ele lá já se foram inúmeros técnicos e pelo menos três gerações de argentinos, alguns muito bons, até outras mais bizarras que tentam simplesmente reduzir e relativizar o peso de uma Copa do Mundo ou outras competições que a Argentina jogou nos últimos anos e mesmo sob a batuta do El Pulga acabou perdendo. Aliás, bem que se diga, esse discurso é ventilado até por jornalistas muito competentes, mas que, como todo mundo, erram e nesse caso específico deixam a paixão falar mais alto que a razão.

Esse caso peculiar é bem interessante de acompanhar e cabe ponderar o papel que a propaganda tem na construção da imagem dos jogadores hoje. Ainda que o marketing esportivo tenha um papel relevante há muito tempo e que todos os grandes jogadores se beneficiaram disso desde pelo menos o período em que o húngaro Puskás amarrava suas pesadas chuteiras e entrava em campo pra chutar bolas pesadas de couro com transmissões internacionais via rádio, nunca ele foi tão sofisticado e alcançou tanta gente. E no caso do argentino ele abrange um potencial ainda maior: é atleta de um clube patrocinado pela gigante norte-americana Nike, o Barcelona; e é estrela máxima da gigante alemã Adidas. O clube catalão aliás é um dos mais bem sucedidos exemplos de marketing no esporte e em qualquer coisa. O barcelonismo, o “més que un club”, fascina muita gente. Naturalmente também jornalistas.

Esse fascínio criou uma névoa sobre as análises em relação ao argentino, que raras vezes eu vi alcançarem um nível tão grande de paixão e negação do debate. E como ele não é brasileiro e não joga aqui, a maioria dos jornalistas esportivos crê que nenhum tipo de isenção é necessária. Isso fica claro quando se analisa por exemplo o embate do craque com outro craque, o português Cristiano Ronaldo — porém sei lá o porquê sem angariar a mesma simpatia por estas bandas. Durante muito tempo quando o Barcelona teve times melhores que o Real Madrid o fato do Messi ser o melhor do mundo era ventilado diariamente como fato inconteste e incontornável. Quando o Real Madrid inverteu e passou a ganhar mais, e com o Cristiano sendo tão protagonista ou mais do que tem sido Lionel Messi, superando o argentino, determinadas exaltações que existiam com A não foram transferidas para B e determinadas comparações com base em números, que antes pediam mais para um lado, começaram a rarear a partir do momento que passou a favorecer o outro. Sem contar o fato de que um deles tem na carreira uma passagem muito marcante por sua seleção nacional com a conquista de uma Eurocopa. E obviamente não falo de Messi.

No entanto não estou aqui reduzindo o Messi (só para aqueles que tratam qualquer questionamento como heresia). Messi ainda é a meu ver o maior jogador de sua geração e talvez o exemplo mais bem acabado de atleta — juntamente com CR7, jogando em altíssimo nível desde muito jovem e com raros momentos de queda técnica. No entanto, como qualquer pessoa, tem deficiências e tem altos e baixos. Na seleção argentina, ainda que se trate isso como tabu, o gênio nascido em Rosário jamais chegou sequer perto de fazer o que nos acostumamos a vê-lo fazer nos campos espanhóis — e a meu ver tem desempenho inferior a Cristiano Ronaldo e Neymar em suas respectivas seleções. Talvez, alegam alguns, porque os rivais da Argentina são mais parelhos do que os Getafes e os Villareal para o Barcelona, que em um futebol de clubes cada vez mais monopolizado surra-os sem dó. Talvez porque Messi tenha mais dificuldade de se adaptar em um ambiente diferente àquele que está acostumado. Talvez tudo isso e simplesmente porque não chegou ainda a hora do craque brilhar por sua seleção. E se ela tiver que chegar, pois, é agora. Tem que ser na Rússia.

Como aprova a Lei de Gil, no futebol vale tudo. Inclusive, para desespero de alguns, questionar Messi — e admirá-lo ao mesmo tempo.