110 anos de Noel Rosa – boemia, tuberculose e samba

Noel Rosa
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Nesse aniversário de 110 anos de Noel Rosa, no meio de uma pandemia de coronavírus, é difícil não nos lembrarmos da outra pandemia, aquela que nos levou o genial sambista e que marcou sua vida e obra.

A tuberculose, que já foi considerada uma ‘doença romântica’ e identificada como um mal típico de poetas e intelectuais – pelo tratamento que exigia repouso e isolamento, normalmente em locais bucólicos –, foi classificada como epidemia em fins do século XIX. Provocando lesões principalmente nos pulmões, a tuberculose tem como principais sintomas emagrecimento, canseira, febre baixa no final do dia, intensa transpiração pela noite e tosse com expectoração. É transmitida por via respiratória e, assim como a COVID, pode passar de uma pessoa a outra por meio de tosse, espirro ou fala, quando o doente infectado dissemina no ar, através de gotículas de saliva, o bacilo causador da tuberculose.

No Brasil, a partir de 1920, com a Reforma Carlos Chagas, o Estado começou a atuar mais ativamente no controle da doença, mas só com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública durante o governo Vargas, o poder público pode consolidar sua intervenção no combate à tuberculose. Nessa época, ocorreu a incorporação institucional de novas tecnologias, como a vacina BCG, a baciloscopia, a abreugrafia, o pneumotórax e outras cirurgias torácicas, além de ter surgido uma especialização acadêmica em tisiologia.

Entre a identificação do bacilo de Koch, em 1882, e a descoberta de medicamentos capazes de combatê-lo, o que só ocorreu em meados da década de 1940, o precário tratamento da doença dependia de medidas higiênico-dietéticas, que envolviam o isolamento dos pacientes, viabilizado pela criação de sanatórios e preventórios. Ao contrair tuberculose, restava ao doente tentar melhorar seu sistema imunológico com muito repouso, uma alimentação balanceada e vida em ambientes com um clima menos agressivo a quem tinha problemas respiratórios. Evidentemente, muitos doentes não conseguiam resistir e foi o que vitimou o músico Noel Rosa, em 1937, quando tinha apenas 26 anos.

Nascido em 11 de dezembro 1910 num humilde chalé de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, Noel de Medeiros Rosa teve desde o nascimento uma história conturbada com sua saúde e as ciências médicas. Vítima de um problema na hora do complicado parto a fórceps, sofreu afundamento e fratura do maxilar, o que lhe causou paralisia do lado direito do rosto e provocou deformação no queixo. Esse traço peculiar da sua fisionomia fez com que ele se mantivesse muito tímido em público, o que desaparecia sob efeito de álcool nas rodas musicais, quando deixava vir à tona seu humor inteligente e sarcástico.

Esse problema no queixo sempre lhe incomodou bastante. Tinha muita dificuldade em ingerir alimentos sólidos, pelo desencontro de suas arcadas dentárias, além de ser muito sensível a observações de outras pessoas sobre sua deformidade. Sua sensibilidade quanto à essa questão ficou evidente quando Noel travou uma disputa musical com outro grande sambista da época, Wilson Baptista.

Respondendo a uma cutucada de Noel feita na composição Rapaz Folgado, Wilson compôs a música O Mocinho da Vila, na qual criticava o adversário sambista e seu bairro. Noel deu o troco com Feitiço da Vila, mas Wilson não se deu por vencido e compôs Conversa Fiada, recebendo como resposta a famosa Palpite Infeliz.

Como na guerra, seja com armas ou com sambas, o importante é vencer, Wilson apelou para o problema físico de Noel, respondendo com a música Frankstein da Vila, o que fez Noel desistir da pendenga. Passado algum tempo, os dois fizeram as pazes e compuseram juntos a música Deixa de Ser Convencido, pondo fim a essa polêmica musical.

Desde muito jovem, Noel Rosa mostrou uma imensa habilidade para a música. Aprendeu a tocar bandolim com a mãe e violão com o pai e, aos dezesseis anos, já havia feito uma composição e tornado-se um bom violonista, frequentando as reuniões do Bar dos Cem Réis, próximo à sua casa. Nessa mesma época, era um assíduo participante nas serenatas organizadas pelos amigos, ao mesmo tempo em que estabelecia contato com vários sambistas da Estácio de Sá e dos morros cariocas, sendo muito influenciado pela cadência e a forma de cantar desses músicos.

E foi na incorporação do ‘Samba do Estácio’ que Noel Rosa revolucionou a música popular brasileira, trazendo para o meio fonográfico e comercial uma música até então marginalizada e considerada “coisa de malandro”, o que ajudou a diminuir o preconceito que ainda havia com o ritmo dos morros.

Para corresponder ao desejo dos pais, Noel chegou a cursar medicina, porém, depois do enorme sucesso que conseguiu no carnaval de 1931 com as músicas Com que Roupa? e Eu Vou pra Vila, ele abandonou o curso, após dois anos, e foi seguir sua verdadeira vocação, inicialmente aceitando o convite para integrar o Bando dos Tangarás, ao lado de Almirante, João de Barro (Braguinha), Alvinho e Henrique Brito.

Mesmo durante o seu tempo na Escola de Medicina, Noel continuava compondo. Um dia, depois de uma aula de anatomia, batucando na mesa do bar onde se encontrava com seus colegas após as aulas, apresentou a eles uma composição chamada Coração, inspirada na aula que acabara de assistir:

Coração,
Grande órgão propulsor
Transformador do sangue
Venoso em arterial;
Coração,
Não és sentimental,
Mas, entretanto, dizem
Que és o cofre da paixão.
Coração,
Não estás do lado esquerdo,
Nem tampouco do direito,
Ficas no centro do peito,
– Eis a verdade –
Tu és pro bem-estar do nosso povo
O que a Casa de Correção
É para o bem da humanidade.

Coração
De sambista brasileiro
Quando bate no pulmão
Faz a batida do pandeiro.
Eu afirmo,
Sem nenhuma pretensão,
Que a paixão faz dor no crânio
Mas não ataca o coração.

Conheci
Um sujeito convencido
Com mania de grandeza
E instinto de nobreza,
Que por saber
Que o sangue azul é nobre
Gastou todo o seu cobre
Sem pensar no seu futuro.
Não achando
Quem lhe arrancasse as veias
Onde corre o sangue impuro,
Viajou a procurar
De norte a sul
Alguém que conseguisse encher-lhe as veias
Com azul de metileno
Pra ficar com sangue azul. [1]

Além de sua genialidade musical, Noel foi um grande letrista que, assistindo às reviravoltas políticas ocorridas na década de 30, usou todo seu talento para fazer em suas músicas uma brilhante crônica social de sua época. A intensa participação na vida boêmia e musical do Rio, aliada a seu olhar perspicaz sobre a sociedade, permitiu ao poeta captar as pulsações do seu tempo, utilizando toda sua ironia filosófica e amarga para descrever em suas letras os conflitos sociais, o imaginário político e sentimental daquele período.

Veio a tuberculose e, como de praxe, seu médico, Dr. Edgar Graça Melo, recomendou imediata mudança de clima, boa alimentação e absoluto repouso por vários meses. Sua mãe, Dona Marta, levantou algum dinheiro junto aos colegas do filho do Programa Casé no rádio e o enviou para Belo Horizonte, cidade onde o clima frio e seco das montanhas era tido como o melhor para se buscar a cura da tuberculose. Mandar Noel para longe do Rio também era uma forma de tentar afastá-lo um pouco da intensa vida boêmia que tanto prejudicava sua saúde.

Nos primeiros dias, Noel seguiu rigorosamente as prescrições médicas, chegando a engordar doze quilos em todo o período em que viveu em Minas Gerais. Um fato curioso dessa época é uma carta que Noel escreveu ao Dr. Edgar, logo que chegou a Belo Horizonte. Essa carta foi escrita em uma das primeiras visitas que fez ao Conservatório Mineiro de Música, em papel timbrado desse Instituto. Mais tarde, com a divulgação do texto, a carta foi musicada por João Nogueira e acabou se transformando, postumamente, em mais um samba com letra de Noel Rosa, sob o nome de Ao Meu Amigo Edgar (Carta de Noel).

É interessante como Noel cita, de forma poética, dados importantes para se avaliar o tratamento e a saúde de um tuberculoso da época. Afirmando que seguia todas as recomendações médicas, relata o fato de estar fazendo o imprescindível repouso e se deitando cedo, ao invés de permanecer as noites em claro na boemia, como fazia no Rio. Menciona seu peso – já que um dos primeiros sintomas da doença, e um problema que era acentuado em Noel por sua dificuldade de mastigação, é o emagrecimento rápido –, cita a constância de sua temperatura, pois os tuberculosos são acometidos de febre em alguns períodos do dia, além de se referir ao exame de escarro, que é um exame utilizado até hoje para identificação do bacilo de Koch no paciente:

Já apresento melhoras:
Pois levanto muito cedo
E… deitar às nove horas
Para mim é um brinquedo

A injeção me tortura
E muito medo me mete,
Mas… minha temperatura
Não passa de trinta e sete.

Nessas balanças mineiras
De variados estilos
Trepei de várias maneiras
E… pesei cincoenta quilos.

Deu resultado comum
O meu exame de urina.
Meu sangue: noventa e um
Por cento de hemoglobina.

Creio que fiz muito mal
Em desprezar o cigarro;
Pois não há material
Para meu exame de escarro.

Até agora, só isto.
Para o bem dos meus pulmões
Eu, nem brincando, desisto
De seguir as instruções.

Que meu amigo Edgar
Arranque deste papel
O abraço que vai mandar
O seu amigo,
Noel [2]

Nessa carta, Noel brinca com seu tratamento e com seu estado de saúde, mostrando como o poeta ironiza certos aspectos da vida ascética a qual queriam lhe impor. A ironia com o tema da morte e da finitude da vida é muito presente em suas composições. Em um samba de 1932, chamado Fita Amarela, ele zomba do próprio velório e revela o tipo herança que quer deixar:

Quando eu morrer
Não quero choro nem vela,
Quero uma fita amarela
Gravada com o nome dela.

Se existe alma,
Se há outra encarnação,
Eu queria que a mulata
Sapateasse no meu caixão.

Não quero flores
Nem coroa com espinho,
Só quero choro de flauta,
Violão e cavaquinho.

Estou contente,
Consolado por saber
Que as morenas tão formosas
A terra um dia vai comer.

Não tenho herdeiros,
Não possuo um só vintém,
Eu vivi devendo a todos
Mas não paguei nada a ninguém.

Meus inimigos,
Que hoje falam mal de mim,
Vão dizer que nunca viram
Uma pessoa tão boa assim. [3]

O desprezo por uma vida regrada, o leva a burlar o tratamento e se enfiar pelos bares belo-horizontinos, permanecendo noites inteiras em animadas reuniões regadas a chope gelado e samba, na companhia dos novos amigos que havia feito com seu enorme carisma.

Reza a lenda que em certa ocasião, voltando a pé para casa, esgotado depois da noitada, Noel deitou-se embaixo do viaduto da Floresta ao lado do inseparável violão e pegou no sono. Instantes depois foi acordado por um guarda que lhe deu voz de prisão por vadiagem. O guarda teria pedido a Noel seus documentos, que vasculhou os bolsos e retirou o primeiro papel que encontrou. Buscando a luz do lampião o guarda constatou que estava lendo uma letra de samba e disse: “Mas este samba não é o João Ninguém do Noel Rosa?”. Noel confirma e surpreende o policial quando se apresenta. E eis que o guarda conta que também era músico, retira do bolso uma pequena flauta e diz a Noel: “Pega o violão. Faz ré maior aí…”.

As lendas em torno de Noel Rosa sempre reforçam como ele nunca esteve muito engajado em seu tratamento e, na primavera de 1935, retorna ao Rio depois de alguns meses em Belo Horizonte. Conta-se que teria dito a seu médico que preferia viver só mais dois anos no Rio de Janeiro do jeito que bem entendesse, do que mais vinte anos em qualquer outro lugar.

E foi o que aconteceu. Depois de crises cada vez mais graves, acentuadas por seu estilo de vida, Noel foi só piorando. Passou seus últimos dias deitado, desenhando caricaturas, e, em abril de 1937, escreveu sua última letra, Chuva de Vento. Em 4 de maio do mesmo ano, morreu em sua amada Vila Isabel, vítima de uma doença extremamente letal naqueles tempos, quando o único tratamento possível, era impossível de ser realizado por um boêmio convicto como Noel.

Uma grande comoção tomou o país pela morte prematura de um dos seus maiores poetas populares. Com a arrecadação de dinheiro feita por alguns sambistas do Rio, como Nássara e Orestes Barbosa, foi erguido um monumento em sua homenagem em Vila Isabel.

Chamado de “Filósofo do Samba” por alguns radialistas e jornalistas da sua época, o “Poeta da Vila”, como também era conhecido, influenciou muitos músicos importantes que vieram depois dele, compondo, no curto período em que se dedicou ao samba, de 1930 à 1937, mais de 220 músicas que até hoje são gravadas pelos maiores nomes da Música Popular Brasileira.

Referências:

[1] ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1977, p.102.
[2] Ibid. p.122.
[3] ANTÔNIO, João (Org.). Noel Rosa: literatura comentada. São Paulo: Abril Educação, 1982, p.68.