O grito das arquibancadas: Livorno, futebol e resistência

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No quadro de avanço quase irrefreável do futebol moderno e da criminalização das torcidas organizadas e do próprio ato de torcer, há bravos heróis que resistem cotidianamente, que lutam pela democratização dos estádios e pelo direito de demonstrar sua paixão. São essas histórias de resistência que o Portal Disparada propõe contar na série “O grito das arquibancadas: futebol e resistência”.

Como estreia, iremos contar a bela história da Associazone Sportiva Livorno Calcio ou, simplesmente, Livorno.

A cidade de Livorno, que empresta seu nome ao clube, surgiu como um pequeno vilarejo de pescadores localizado na Toscana e atualmente é um dos portos mais importantes do mediterrâneo. Como não poderia ser diferente em um grande centro comercial, o movimento operário é muito forte na cidade, em especial as organizações sindicais dos estivadores e trabalhadores do porto.

Além das agremiações políticas, a A. S. Livorno é um importante espaço de convivência dos trabalhadores do cais e, como não poderia deixar de ser, é umbilicalmente ligada às ideologias dos trabalhadores. O Livorno é, por excelência, o local de convivência e lazer dos trabalhadores portuários, não só nas arquibancadas apoiando incondicionalmente a esquadra, mas também no campo de jogo.

Essa junção entre trabalhadores organizados politicamente e a instituição esportiva por eles abraçada faz com que a atmosfera do estádio Armando Picchi se assemelhe à de um comício ou outro evento político. Bandeiras vermelhas, com a foice e o martelo e com os rostos de Che Guevara e Lênin estão presentes em todos os jogos no setor norte onde fica a torcida organizada do Livorno.

O movimento popular de esquerda da torcida do Livorno se inicia por volta do ano de 1975 com a fundação dos Ultras Livorno que foi sucedida pelo surgimento de diversos outros grupos, praticamente um para cada bairro da cidade. Quando, finalmente, em 1999 surgem as famosas Brigate Autonome Livornesi ( B. A. L.) com o intuito de unificar os grupos organizados da torcida sob  uma única organização.

As B. A. L. se destacaram pela postura combativa nas arquibancadas, enfrentando de modo irascível o fascismo e as torcidas de extrema direita italianas, como a da Lazio. Seus cânticos eram lendários hinos de resistência ao futebol moderno e iam desde as clássicas canções “bandiera rossa” e “bella ciao” à cânticos como “Berlusconi pezzo de mierda” (em tradução livre: Berlusconi, seu merda!).

As Brigadas possuíram papel fundamental na organização das torcidas antifascistas italianas e promoveram a chamada Fronte di Resistenza Ultras, espécie de frente única das torcidas de esquerda que atuou fortemente no início dos anos 2000 no combate às torcidas de extrema direita, especialmente da Lazio.  Foram capazes de sintetizar organização, paixão, política e identidade do clube. Contudo, a implacável perseguição das autoridades impulsionada pela sanha persecutória da mídia, que os tratava como se fossem mafiosos, levou a sua dissolução.

Todavia, o ideal de resistência da cidade operária de Livrono não morrerá jamais, senão com a queda do capitalismo, e com o fim das Brigadas surge a Curva Nord,herdeira dos ideais das Brigadas.

Não se pode falar de Livorno sem se falar de Cristiano Lucarelli, o jogador  é a prova viva de que o clube é formado por trabalhadores e para os trabalhadores.

Lucarelli nasceu e se criou no bairro de Xangai, um bairro de má fama e pobreza na cidade de Livorno, filho de estivador sindicalizado e filiado ao partido comunista, o então menino Cristiano esteve cercado desde a infância de bandeiras vermelhas, do Partido Comunista Italiano e do Livorno.

Após rodar por alguns clubes italianos, finalmente em 2003 Lucarelli estreia pelo clube de seu coração, vale dizer, abrindo mão de jogar em clubes maiores recebendo mais dinheiro. Usa a camisa 99 em alusão ao ano de fundação das B. A. L. da qual foi um dos fundadores. Faz uma temporada fantástica e leva o Livorno novamente à primeira divisão do campeonato italiano. Além de seu grande prestígio como jogador de futebol, Lucarelli também é reconhecido por suas qualidades como militante, declara-se abertamente de esquerda e chegou a apoiar greves operárias com dinheiro de seu próprio bolso.

Outro episódio elucidativo do caráter aguerrido da militância do jogador aconteceu quando ele ainda disputava campeonatos de base pela seleção italiana. Em 1997, defendendo a seleção italiana sub-21, o jogador chegou a impressionante marca de dez gols em dez jogos. Ao comemorar seu tento contra a Moldávia, o jogador tirou sua camisa (atualmente tal atitude por si só já gera punição) para mostrar o que levava por baixo: uma camiseta branca estampada com o rosto de Che Guevara. Após está comemoração, Lucarelli foi condenado ao ostracismo pela Federação Italiana, voltando a ser convocado somente em 2005.

A história do Livorno nos prova que o futebol é muito mais do que resultado e títulos. Pois, o Livorno, assim como Lucarreli, nunca foi  fantástico, oscilou entre divisões ,atualmente se encontra na terceira, e nunca levou o scudetto . Mas, desempenha um papel essencial na defesa do futebol popular e na promoção de ideais antifascistas e comunistas, conjugando dois aspectos fundamentais da vida de seus torcedores: futebol e política.