Onze da Noite na América

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Um dos privilégios que a história, a geografia e a diplomacia honraram a nós, brasileiros, foi delimitar as fronteiras do nosso espaço ao largo da vizinhança de povos dotados de imensa capacidade literária.

A América do Sul nada deve a qualquer outro continente em termos de literatura. Neruda, García Márquez, Isabel Allende, Borges, Cortázar, Vargas Llosa, Bolaño, Gabriela Mistral, sem mencionar os brasileiros. Cada um deles acrescentou ao patrimônio cultural da nossa espécie contribuições das mais inventivas, de valor inestimável.

Lograram não apenas expressar a visão do continente sobre temas caros à humanidade mas, também, imortalizaram com suas palavras o nosso local no Olimpo das Letras. Mais que isso, edificaram uma escadaria de papel que ascende às nuvens, conectando ao Panteão divino da cultura humana as mais remotas aldeias e povoados do sul do Novo Mundo. Mostraram que por mais ignorada que seja a nossa América, ela segue em movimento.

Ao Brasil, tão próximo, talvez pareça que as densas matas amazônicas e os imponentes cumes da Cordilheira tenham limitado o vigor para estabelecer um vínculo cultural mais estreito com os nossos vizinhos. Mas a verdade é que nossa condição de subdesenvolvimento nos impõe goela abaixo o consumo exacerbado e frequentemente exaustivo de cultura dos países desenvolvidos.

Certamente há o que absorver da leitura de um Shakespeare, de um Stendhal, de um Goethe ou de um Fitzgerald. Não há a menor dúvida. Aliás, o mérito dos nossos escritores é justamente nos colocar em pé de igualdade com os gigantes do norte.

Não deixa de ser uma infelicidade, contudo, existir tamanha e injustificada distância entre nós sul-americanos. Mas olhemos com mais calma para um outro fenômeno curioso.

Não está a nossa própria identidade cultural também se esvaindo? Apesar da inegável efervescência cultural que vive constantemente todo o país e o continente, os espaços de usufruto dos nossos próprios bens imateriais são cada vez mais escassos.

O enfraquecimento relativo da nossa cultura frente ao imperativo mercadológico imposto por grandes empresas estrangeiras no campo de todas as artes tem até mesmo nos levado a trocar as palavras do cotidiano. Quem nunca comeu fast food e depois se sentiu culpado por querer ser mais fitness? Ou chegou cansado do trabalho desejando ter uma cama king-size para ficar largado a noite toda desenfileirando os stories acumulados do Instagram, fazendo uso de algum desses apps de chat?

Digressões a parte, é claro que o fenômeno é muito mais relevante e profundo do que apenas estrangeirismos superficiais da comunicação diária, e que afeta, obviamente, as diversas gerações em diferentes níveis. Mas a globalização cultural, a financeirização e a desindustrialização são todos fenômenos que tem aberto os portões dos países periféricos à crises de identidade.

Sem fatalismos deterministas, o Brasil também vive isso. Em recente palestra no Rio, o general Eduardo Villas Bôas chamou atenção para o fato de estarmos nos desfigurando como nação e alterando a nossa identidade.

O FANTÁSTICO DA PROXIMIDADE GEOGRÁFICA

Um olhar a partir dos nossos entornos geográficos bem que poderia operar sua mágica. Há dois contos de dois autores argentinos, Jorge Luis Borges (1899-1986) e Julio Cortázar (1914-1984), ambos representantes do realismo fantástico, dos quais podemos extrair importantes lições.

No primeiro, “Funes, el memorioso” publicado em 1942, Borges nos apresenta o personagem Ireneo Funes, um jovem que após sofrer uma queda perde a mobilidade mas ganha uma memória infalível e uma percepção impecável.

Funes pode se lembrar de absolutamente tudo em seus mais íntegros detalhes. É capaz de aprender latim fluentemente após ler um dicionário inteiro de uma só vez, por exemplo. Sua capacidade impressionante lhe rende um aspecto monumental, profundo. O garoto parece possuir todo o conhecimento do mundo, quase como um oráculo.

Seu raro dom, no entanto, é ofuscado por sua inadequação definitiva à realidade do mundo em que vivemos. A imobilidade de Funes, ao meu ver, paradoxalmente não é física, mas existencial. Não é capaz de pensar, pois pensar é ser capaz de construir generalizações, quando na verdade sua cabeça está interditada pelos mais minuciosos detalhes inúteis de absolutamente tudo que não consegue esquecer. Como poderia ser capaz de agir, se o presente e o passado lhe surgem como uma barreira? Agir é transformar, pôr em movimento, adiantar-se ao futuro. Uma congestión pulmonar o pega de surpresa, demonstrando a futilidade de suas habilidades diante da condição humana.

O segundo, de Cortázar, publicado quatro anos mais tarde numa revista dirigida por Borges, chama-se “Casa Tomada”. O conto todo é uma alegoria da nossa relação mais íntima com os fatos e valores que constituem a nossa identidade. Ou pelo menos essa é uma interpretação possível. Cortázar sonhou o conto antes de escrevê-lo.

Trata-se da história de dois irmãos que vivem num gigantesco casarão portenho herdado pela família desde os tempos de seus bisavós. A casa é um ninho de lembranças e memórias do passado, tanto de seus familiares quanto da própria infância dos personagens. Afetivamente atrelados a uma rotina estática, que se resume a tricotar ou passar todo o tempo limpando a casa, lendo literatura francesa, ou cozinhando, os dois irmãos vivem de renda recebida do campo, não trabalham. Não sei se o autor atribuía ao trabalho uma função dignificadora, como tantos o fazem. Mas a verdade é que não há nada engrandecedor na rotina dos dois. Em dado momento, demonstram preocupação apenas com certo dinheiro que ficou perdido.

Pouco a pouco o casarão vai sendo tomado e ocupado, sabe-se lá por quem, e isso é recebido prontamente com espanto mas logo encarado com uma passividade angustiante por ambos, que seguem seus rituais rotineiros nos cômodos que lhes sobram. Ao final do texto, o leitor depara-se com uma casa totalmente subtraída de seus donos, que vão embora indiferentes.

Desde o próprio título do conto, curiosamente, Cortázar, por meio de um narrador inominado em primeira pessoa, apresenta a casa como protagonista e não seus habitantes. É a casa mesmo que remete a tudo que os constitui, e não o contrário. Sua presença na casa parece não influenciar em nada e logo são substituídos por novos moradores.

A reação sempre apática dos irmãos, porém, estranha ao leitor. Que tipo de narrativa é essa, que nos dá a sensação de descaracterizar os personagens em seu decorrer? Cortázar enigmaticamente nos enfeitiça ao iniciar seu último parágrafo: onze horas da noite, terminava o dia, evaporava a identidade de seus personagens, e o conto acaba.

IDENTITARISMO E SUBDESENVOLVIMENTO

No Brasil de hoje, a dinâmica incessante da realidade atravanca qualquer chance de captá-la e compreendê-la com fórmulas prontas, sugadas do passado ou traduzidas no presente por dicionários estrangeiros como realizou Funes. Em tempos de relativização extrema da facticidade da política e de forte fragmentação da sociedade em bolhas de identidade (negros X brancos, mulheres X homens etc.), cada uma das quais enunciando as suas “verdades inegáveis” e tomando por pressuposto a ausência do diálogo entre si, o mesmo tipo de barreira petrificante que prendeu Funes ameaça afogar o nosso futuro num oceano de silêncios cruzados.

O identitarismo que fratura os vínculos sociais do país também é reflexo da lógica desenvolvimento-subdesenvolvimento operante na economia internacional. Nos tornamos consumidores de valores culturais que nos desunem e a indiferença de uma “casa tomada”, diante dessa ofensiva cultural, não pode ajudar o país a levantar-se do abismo acima do qual se pendura.

É necessário afirmar decididamente os valores históricos da nossa identidade nacional. Não o que divide o Brasil entre brancos e negros, homens e mulheres, índios e europeus, mas sim aquilo que nos une. Nossa miscigenação, nossa inventividade, nossa teoria de nós para nós mesmos, construída por brasileiros da dimensão de um Darcy Ribeiro, João Gilberto, Celso Furtado e outros tantos.

É preciso compreender o dever público de invocar a nossa brasilidade e nosso sentimento de pertencimento a uma América do Sul autônoma e compartilhada.

Não se trata da exclusão do enriquecido patrimônio cultural de vários países desenvolvidos, muito menos da interdição de um saudável intercâmbio cultural, mas sim da delimitação e estabelecimento de um intenso espaço cultural próprio que qualquer nação merece, além de saber apontar o nosso autêntico lugar no mundo.

Ao contrário da omissão dos irmãos do conto de Cortázar, o Brasil deverá aprender a dizer sobre si e sobre o continente, como Neruda: “América, no invoco tu nombre en vano”.