O pensamento pseudocientífico de Gilberto Freyre

Gilberto Freyre
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Gilberto Freyre nasceu em 15 de março de 1900 e morreu em 18 de julho de 1987, era de família aristocrática e intelectual, com o pai professor universitário e juiz de direito, o que permitiu que estabelecesse contatos para que Freyre fosse estudar na Universidade Baylor, no Texas, EUA, onde se formou bacharel em artes liberais. Posteriormente, fez o doutoramento na Universidade de Columbia, também nos EUA, que foi fundamental para o seu estudo, vez que teve contato com as ideias de seu mestre Franz Boas, que afirmava que as diferenças existentes entre brancos e negros decorriam das disparidades entre culturas, e não de alguma distinção natural (pesquisas que queriam provar a superioridade biológica do branco sobre o negro estavam muito “na moda” desde o final do século XIX).

No prefácio à primeira edição do livro Casa Grande & Senzala (1933), Freyre afirmou que “foi o estudo de antropologia sob a orientação do professor Boas que primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste ensaio”.

O livro é publicado no momento em que o racismo científico tinha se estabelecido com base nos estudos de pesquisadores da Faculdade de Direito de Recife e da Academia de Direito de São Paulo, a partir de concepções que definiram que os negros eram inferiores e incivilizados em razão da sua condição genética. Lilia Moritz Schwarcz, no livro O Espetáculo das Raças (1993), apontou que o racismo científico associava a propagação das doenças com a mestiçagem, e no século XX, acrescentam-se as teorias jurídicas, com a concepção dos negros e mestiços como criminosos e degenerados. Mas, para além disso, o racismo científico colocou o mestiço em condição inferior ao do negro, a ponto de ele ser culpado pelo fato de o Brasil não se industrializar. Estes argumentos eram utilizados para justificar o branqueamento, com europeus, mas não os portugueses, pois estes eram entendidos como uma nação mestiça.

Casa Grande & Senzala construiu argumentos contrários ao racismo científico, inclusive com citação a Nina Rodrigues, para mostrar que a tese de superioridade racial era uma ilusão. Porém, Freyre criou uma forma de racismo que consiste na negação da crueldade e perversidade vivida pelos negros na época de escravidão, bem como na condição de homens livres.

O ensaio de Freyre coloca que a nação Brasileira é formada de um povo mestiço e que até os donos dos engenhos são mestiços. Para ele, o povo brasileiro não é uma nação de brancos e nem de negros, mas de mestiços, fruto de “relacionamentos” dos portugueses com as escravas indígenas e negras. Importante destacar que escravos eram coisas ou mercadorias, logo, nunca foi pedido que consentissem. As ordens dos senhores de escravos era imposta e se manifestava a partir da dominação, de modo que é absurda a alegação de que o mestiço era fruto de “relacionamentos”. Na verdade, os mestiços eram resultado de estupros, violências e tantas outras formas de controle sobre os corpos das escravas.

Todas as vezes que Freyre narra sobre a família brasileira e do casamento, ele coloca a importância das diretrizes da Igreja Católica, para estabelecer a moral daquela sociedade, de maneira que as mulheres brancas “eram para casar e ficarem em casa”, enquanto os homens brancos tinham liberdade para fazer o que bem entendessem.

A suposta harmonia entre as crianças brancas, indígenas, negras e mestiças nunca existiu, porque as crianças escravas eram muitas vezes dadas como presentes para as crianças brancas, que as maltratavam e reproduziam terríveis violências contra os seus brinquedos-escravos. Ou seja, ainda que as crianças mestiças fossem irmãos das crianças brancas, estes eram os únicos herdeiros (ainda mais porque a lei brasileira só admitia herança aos filhos tidos dentro do casamento), o que também evidencia o racismo em sua obra.

O livro apresenta de modo exaustivo como as doenças se disseminavam nas sociedades escravocratas, e é notável que era em razão dos estupros praticados pelos senhores de engenho e de escravos. Eram estes homens brancos, católicos e “de família” que estupravam as escravas, bem como tinham relações sexuais com as suas mulheres e nos bordeis. As doenças sexualmente transmissíveis se alastravam de tal forma, que é possível dizer que a Casa Grande e a Senzala eram piores que os bordeis da época, que Freyre considerava estes mais higienizados que aqueles, a ponto de considerar que a sífilis era uma doença doméstica.

Freyre também apontou que os indígenas eram limpos, pois a todo tempo tinham liberdade para se banharem nos rios, sem que o excesso de pano lhes fosse empeço. Mesmo assim, a Igreja impunha às escravas os trajes eurocêntricos, com muitos panos, o que impedia a higiene habitual, logo, permitia o aumento de doenças.

Mesmo assim, as ideias de Freyre foram colocadas como Projeto Nacional no Governo de Getúlio Vargas, a tal ponto que o racismo científico foi sendo deixado de lado, ou aperfeiçoado, para a construção de um Brasil miscigenado, colocado como exemplo para outros países de como formar uma sociedade racialmente democrática, apesar de Freyre não ter mencionado nessa sua obra a palavra democracia.

As concepções de Freyre criaram uma ideologia que permanece até os dias de hoje, que consiste no imaginário de que a identidade nacional brasileira é o mestiço, razão pela qual uma parcela da sociedade defende que não existe racismo no Brasil. No entanto, mesmo na época de lançamento do livro Casa Grande & Senzala, havia grupos do movimento negro se mobilizando para denunciar as disparidades entre negros e brancos, não apenas com palavras ensaísticas, mas com dados. No Artigo “Plantam-se sementes para colher libertação”, foi apresentada a retrospectiva da luta antirracista, evidenciando que, até o momento, nunca houve democracia racial no Brasil.

Os professores Júlio Vellozo e Silvio Luiz de Almeida afirmaram, no artigo O Pacto de Todos contra os Escravos [1], que havia um consenso social de manutenção do sistema escravagista, e que as normas civis e jurídicas fortaleciam essa estrutura, já que as normas de proteção da propriedade escrava era garantida, e contra essa sua mercadoria eram autorizados todos os tipos de penalidades. Não havia limites para a imposição de castigos e punições contra os escravos.

A Professora France Winddance Twine, no livro Racism in a Racial Democracy (1998), realizou uma pesquisa de campo no Rio de Janeiro e constatou que não havia democracia racial no Brasil, pois negros permaneciam em condição de subalternidade, a tal ponto que os relacionamentos interraciais reproduziam as mesmas estruturas racistas.

Apesar do destaque que é dado à obra Casa Grande & Senzala por ter tido repercussão internacional no momento de sua publicação, é importante destacar que, a partir da leitura desse livro, é possível concluir que Freyre era machista, racista e elitista. Machista, pois considerava o homem em posição social privilegiada em relação à mulher, racista, pois dava prevalência absoluta ao branco em relação ao negro (ainda que o branco brasileiro era, para ele, um mestiço, jamais permitiu que negros fossem equiparados a eles), e elitista, pois legitimava as normas sociais de manutenção da ordem da casa grande sobre a senzala e dos palácios sobre os casebres.

O ensaio de Freyre não apresenta qualquer rigor científico com metodologia e dados, sendo uma reflexão sobre a sua visão de mundo, sem realizar reflexão sobre a condição dos escravos e dos negros.

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Este artigo foi desenvolvido a partir das reflexões realizadas para apresentação no encontro do Grupo de Pesquisa Estado e Direito no Pensamento Social Brasileiro, coordenado pelos Professores Silvio Luiz de Almeida e Júlio Vellozo, em 18/07/2020.

Referências

Referências
1 VELLOZO, Julio Cesar; ALMEIDA, Silvio Luiz de. O Pacto de todos contra os escravos. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, 2019, p. 2137-2160. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662019000302137. Acesso em: 03 ago 2020.