Por que Coringa incomoda tanto?

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O diretor Todd Phillips se pronunciou recentemente em relação às críticas à violência explicita do filme. “É um filme complicado, e eu já disse antes que eu acho tudo bem ser complicado. Eu realmente não imaginava o tamanho do debate no mundo. Eu acho interessante. Acho que está tudo bem, isso acende conversas e há debates em relação a isso”, explicou.

De fato, o filme é “complicado” para uma indústria cinematográfica que acostumou seu público a ver explosões e mortes banalizadas. Hoje, os chamados blockbusters de filmes de super-heróis são o que sustentam financeiramente a indústria cultural norte-americana. Mas Coringa parte deste patamar para tornar-se uma obra prima, que deveria surpreender positivamente Scorsese e sua opinião sobre os tais filmes de super-heróis. Coringa é violência e o espelho do real. É um Birdman (ou A Inesperada Virtude da Ignorância) às avessas, porque agora o fantasioso se tornou o cotidiano de um capitalismo definhado, e não o inverso.

Joaquin Phoenix definhou para que seus espectadores pudessem ver com os próprios olhos que personagens de um HQ não precisam trazer ação e entretenimento para existirem em imagem e som. O ator, que já havia sido alvo de intensas críticas positivas anteriormente, trabalhou arduamente – repare nos detalhes da cena de abertura da obra, quando chora ao expressar o sorriso desesperador do palhaço – para interpretar a transição de um Arthur Fleck para seu alter ego, Coringa. Arthur é acometido por severo quadro depressivo, comportamentos esquizofrênicos, obsessivos e paranoicos, além do distúrbio alimentar e Riso e Choro Patológico. Arthur não pode sequer se expressar. Ri compulsivamente, como um choro desesperado, quando não o quer.

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Arthur é triste; não pode manter a si e sua mãe financeiramente e sofre violências físicas e psicológicas diariamente, enquanto é um dos tantos a ser desamparado pela ausência de políticas públicas para saúde mental. Ele carrega o peso de tentar e querer ser alguém que não pode. Por isso é doloroso demais ver a cena de quando o protagonista faz anotações em seu livro/diário, especialmente a de que “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse”. Essa é a principal questão da obra prima chamada Coringa: se você quer a clássica ação de um vilão mainstream, terá o ultrarrealismo do cotidiano capitalista pós-moderno. O niilismo de suportar o caos torna Coringa o vilão deste, passando a enxergar sua vida como a comédia do absurdo, onde nada mais importa ou lhe surpreende.

O fardo da injustiça de uma Gotham novaiorquina comandada por empresários milionários, que não tem a menor noção do que acontece fora de seu rentismo e sala de cinema – onde riem de “Tempos Modernos” –, sai do corpo enfraquecido de Arthur, cujos ossos imploram para sair da pele, para nutrir Coringa, seu subconsciente. Ao passo que Coringa vira o sentimento generalizado de apolítica, concretizado no estopim da frase de efeito “somos todos palhaços”, ecoada pela população perdida e anárquica e que vê na revolta desarticulada uma alternativa a Thomas Wayne e à elite de Gotham.

Mas pasmem, ao contrário do que andam dizendo por aí, não é a violência de Coringa que deveria ser um problema. Até porque qualquer sucesso de bilheteria destes tempos nossos matam mais que o protagonista matou em duas horas e dois minutos desta arte que falamos.

O que incomodou, e muito, foi a negação da realidade que esses espectadores críticos não querem conhecer. Incomoda ver um personagem com distúrbios mentais não sendo tratado pelo estado e tendo seu quadro substancialmente deteriorado. Incomoda a pobreza financeira de Arthur e sua mãe. Incomoda ver Arthur nos revelando os rostos dos pacientes do Asilo Arkham, que finalmente torna-se próximo à realidade. Incomoda ouvir seu riso agonizante sendo gradativamente abandonado, ecoando nos cantos sombrios de Gotham.

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Coringa incomoda porque é um cidadão de bem que se torna vilão, mas antes disso nos revela toda sua subjetividade, as características de seu ser na mais profunda essência e que jamais queremos enxergar. A compaixão e compreensão são naturalmente incômodas ao espectador que esperava ver o grandioso vilão de Batman com seus barulhentos explosivos, matando duas mil pessoas nas telas do cinema – esse é o número de vítimas do vilão, citado no HQ Joker: The Devil’s Advocate.

O Coringa, construído de maneira genial por Joaquin Phoenix, traz a ausência do moralismo para um novo nível, podendo ser comparado até mesmo com Lars Von Trier – especialmente em seu mais recente “A Casa que Jack Construiu” – e Kubrick, em “Laranja Mecânica” ou “De Olhos Bem Fechados”. A atuação é provavelmente a mais grandiosa que Joaquin já nos revelou, acompanhada de uma direção e roteiro quase impecáveis. A fotografia de Lawrence Sher colore e contrasta todos os sentimentos de Arthur, invisíveis aos olhos nus, e esverdeia toda a melancolia do mofo da envelhecida Gotham. Já as danças desesperadas do protagonista têm a ajuda da competente trilha sonora de Hildur Guõnadóttir, traduzindo a insistente tentativa de Arthur em finalmente conseguir expressar suas agonias de alguma forma que seja. Esta forma é a arte. Tudo em Arthur é arte, inclusive Coringa, o simultâneo sintoma e retrato das doenças do capitalismo. Coringa, como personagem e obra, incomoda porque é a arte ultrarrealista do incompreensível, desamparado, do marginalizado que não queremos ver e trancafiamos nos manicômios e presídios.

O caos gerado do clímax ao final da obra é a desordem das mobilizações vividas no mundo desde a primavera árabe. O filme é a alegoria de sentimentos reprimidos pela nossa construção social, sendo também um espelho da atual desordem da vida humana em sociedade.

De amoral a “doente”, Joaquim Phoenix foi materializando e corroendo a si e a quem o vê, até finalmente expressar a maestria nunca antes revelada pelos HQ’s do palhaço do caos, que agora despenca em nós o peso de sua subjetividade. Pelo caos, Arthur sente-se finalmente amado. O filme de Todd Phillips é denso e nocauteia quem o compreende, sendo essa a razão de que jamais será apenas um sucesso de bilheteria. É sim um marco cinematográfico contemporâneo. Agora, torço para que passemos a falar sobre o que realmente importa dessa grande inventividade humana que estremeceu o moralismo da grande indústria.

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