Existir, resistir e flertar – Política, homossexualidade e poder

EXISTIR, RESISTIR E FLERTAR – Política, homossexualidade e poder (2)
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EXISTIR, RESISTIR E FLERTAR – Política, homossexualidade e poder. (Uma reflexão sobre o Ser: o substantivo próprio; não o verbo auxiliar anômalo.)

INTROITO

Era 20 de novembro – Dia da Consciência Negra. O alcance da consciência está no limite do resultado de uma equação de inúmeras incógnitas: a quase totalidade delas definida pelos autores da Sociedade; e o restante, uma ínfima parte, por aqueles que se pretendem inserir, questionar, lutar e, se possível, interferir.

Amparado por esta força espiritual que se junta harmoniosamente neste dia, iniciei um processo de auto arguição sobre inúmeros pontos que envolvem os espaços de liderança e as pessoas LGBTI+, em especial os jovens gays. Para tanto me valho de minha vivência nesses espaços. Sim. Este é um artigo de opinião, de vivências e experiências. Não há – nem de longe – qualquer pretensão de construir um artigo acadêmico: no máximo posso estar incluindo algumas incógnitas nesta luta maior.

ATO I

Para entender esses espaços de liderança e poder e a distância assustadora de que estão das pessoas LGBTI+ é fundamental um olhar para a construção da sociedade brasileira, suas estruturas sociais e de poder, desde o simbólico até o real.

Esse poder foi construído de forma patriarcal, patrimonialista, branco, heteronormativo, hereditário e euro centrado. Ou seja: o Brasil construiu uma sociedade e uma casta mandante – baseada no compadrio – que é, em sua gênese, machista, misógina, elitista, racista, LGBTfóbica e xenofóbica.

Tudo isto, enraizado por séculos, potencializado por um povo aculturado, com uma mídia corporativa à serviço do grande capital; fazendo com que esses traços elementares do atraso e do pré-conceito se enraizassem no conjunto das organizações da sociedade brasileira. Aqui incluídos os partidos e organizações políticas.

Nestas reflexões, não se pretende uma inquisição sobre os partidos e entidades do movimento social; mas um olhar apurado com vistas a comprovar a breve análise feita. Dos mais de 30 partidos brasileiros, somente quatro são presididos por mulheres; a UNE só teve sete mulheres presidentes em 82 anos de história. Quantos negros e negras ocupam ou ocuparam estes espaços? Quantos gays são dirigentes nacionais de seus partidos? Nenhuma central sindical é presidida por mulheres ou LGBTI+.

No Congresso Nacional isto não é diferente. Quantos parlamentares assumidamente gays temos no Congresso? O deputado David Miranda (PSOL-RJ), o deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) e o senador Fabiano Contarato (REDE-ES); mas apenas David é militante LGBTI+. Quantos congressistas ocultam sua sexualidade para não perder votos? Posso afirmar que existem outros deputados gays no Congresso. E mesmo na juventude – que tende a ser mais progressista e transgressora – essa herança arcaica se projeta. Quantas juventudes partidárias são presididas por gays e LGBTI+? Em quais delas há empoderamento real nas tarefas centrais da organização para jovens LGBTI+?

O traço LGBTfóbico da sociedade brasileira passa tanto pelo não empoderamento quanto pelo julgamento que aqueles jovens gays que conseguem, com muito sacrifício e renúncia, alcançar postos de liderança e protagonismo sofrem por parte dos heterossexuais de suas próprias organizações. E pior, pelo julgamento de parte dos próprios companheiros LGBTI+, o que comprova a máxima de que “quando não há liberdade, o sonho do oprimido é ser opressor”.

ATO II

Nesta quadra desta reflexão, é necessário abordar as relações de poder e sexualidade na política: seus campos simbólicos, a construção da figura do líder e os fatores geracionais.

– Por que as relações de poder e sexo, quando envolvem homens heteros, são relativizadas e normalizadas; e quando envolve jovens homens gays recebem uma dura régua moral? – Por que o homem hetero, em espaço de poder, pode exercer de forma plena a sua liberdade sexual; e o jovem gay em igual posição deve ser casto? – Por que o homem hetero empoderado carrega consigo a aura do poder e toda a liturgia do cargo que lhe acompanha quase que em um espaço messiânico de liderança; e o homem gay deve se policiar e tolher o exercício de sua liberdade sexual, exercendo-a sem exageros, plenitude e publicidade?

Percebam: são dois campos simbólicos idênticos e potentes – o poder e o sexo – em que apenas as personas se alteram.

Ora o hetero detentor de poder construindo relações e oportunidades de sexo e afeto com mulheres; ora um gay detentor do mesmo espaço de poder (cuja jornada até aí foi muito mais espinhosa; custando, inclusive, a muitos, a negação da sua sexualidade para alcançar e manter o status quo na hierarquia do poder político), construindo relações e oportunidades de sexo e afeto com outros homens (heteros inclusive).

Só que em uma sociedade como a nossa – em que o simples afeto entre dois homens (independente de sexualidade e de conteúdo sexual) em sua forma mais simples é estigmatizado; em que um pai e um filho abraçados são espancados – o flerte de um gay detentor de poder é encarado pelo hetero como algo violador, descabido, até mesmo como assédio.

E aqui não há que se falar em relativização do assédio: seja em qual modalidade for; por quem quer que seja; contra qualquer pessoa, em especial contra as mulheres. Assédio é crime e ponto final. O que se quer abordar aqui é a diferença pela qual fenômenos sociais são encarados de forma e proporção diferentes, sempre que envolvem distintas personas.

Pois bem, esse homem hetero dito progressista, que tem fetiche em transar com um casal lésbico para exercer seu poder sexual sobre duas mulheres ao mesmo tempo, é o mesmo que acha moda ter um amigo gay ou bi, desde que seu amigo não dê em cima dele. Que pode até admitir praticar brotheragem, mas que se indigna facilmente com o flerte de um gay hierarquicamente superior a ele.

No campo do fator geracional e sua influência nas relações sociais, há que se debruçar sobre a geração Z, que tem no seu comportamento social de forma cada vez mais contundente: a fluidez sexual. Ela não se importa com rótulos e caixinhas, mas com vontades. E se não há rótulos, ou pelo menos coexiste a desconstrução destes, qual o pecado de um gay, detentor ou não de poder, flertar com um hétero?

Quebrar o tabu quanto ao flerte é quebrar também o tabu sobre o exercício do poder e sexo; sobre o exercício da liberdade sexual. Ninguém – hetero ou gay – deve usar do seu poder institucional (seja na política ou fora dela) para construir e oportunizar sexo. Mas também, não pode um líder gay ser tolhido, estigmatizado ou esquadrinhado sob uma régua moral desproporcional. Como diz o saber popular, “pau que dá em Chico; dá em Francisco”.

O que não se pode aceitar – e aqui se contesta, expõe e combate – é a desumanização do gay detentor de poder, a negação da sua sexualidade e das suas vontades, do seu afeto. E isto fica patente quando lhe imputam a barreira do poder.

E este poder cria uma regra de comportamento privativa aos gays: “Você deve ser assexuado, pois tudo que você faz é precedido do cargo”. E aí está um dos principais componentes da solidão da liderança. Falta, neste caso, empatia dos seus pares. Sim. Pares. Ora, se as sexualidades são distintas; e ambas as personas constroem coletivamente uma mesma organização, partilham ideais, são companheiros. Portanto, entre companheiros não pode faltar empatia.

Mais assustador ainda é quando a régua moral parte de outros LGBTI+, que reproduzem o discurso moral heteronormativo.

ATO III

Não podemos achar que a caminhada neste intricado cipoal de regras de convivência se resolve com empatia, apenas. Não podemos buscar apenas os atalhos. Para isto, é fundamental que se tenha consciência que, mesmo no século passado, das grandes descobertas científicas, houve uma série imensa de práticas desumanas em todo esse processo – praticadas por tribunais conservadores e até pelo nazi fascismo.

A cura gay, que alguns políticos neopentecostais procuraram difundir não chega a ser uma novidade, se comparada a experiências ocorridas em países ditos evoluídos, como a castração química, a privação sexual, e experimentos lobotômicos. Tudo isso já serviu de régua punitiva contra gays.

Na Inglaterra da simpática Rainha Elizabeth II, cerca de 50 mil homens foram processados e presos pela lei que criminalizava a homossexualidade – incluindo o famoso Alan Turing, pai da informática. Recentemente o governo propôs o perdão dessas condenações.

Na Alemanha nazista, os infames triângulos rosas foram impostos a cerca de 100 mil homens gays; destes, entre 5 e 15% foram enviados aos campos de concentração e 60% foram assassinados. Homens gays expostos aos horrores do nazi fascismo, de seus campos de concentração e ao fim assassinados por amarem um igual.

ÚLTIMO ATO

Tudo isto me leva à construção de uma certeza: somente ampliando o enfrentamento, agarrando com unhas e dentes o empoderamento e escancarando os conflitos é que poderemos garantir o pleno exercício de nossa liberdade sexual.

O carão, o close, o tombo, a bicha preta ativista, a travesti periférica, o trans militante são o presente – ocupando espaços, construindo vozes cada vez mais potentes e espalhando purpurina nos muros cinzentos da heteronormatividade. Somos quem nascermos para ser. Quem queremos ser.

Somos donos dos nossos corpos, das nossas vontades, das nossas identidades. Saímos do armário e não vamos retroceder.

Cada um de nós deve se preparar (estudar com afinco; ler com atenção; ouvir e processar em mente as mensagens de nossos mestres) para os postos de poder e protagonismo que por tanto tempo nos foram e seguem sendo negados.

E o campo de ação é vasto: nas bancadas dos telejornais; no cinema; na tv; com o megafone na mão; nas casas legislativas; em todo canto. A nossa marcha é para fora do armário. Porque para o armário só voltam as vassouras.

Por William Rodrigues, presidente nacional da Juventude Socialista, carioca, advogado e militante do PDT há 13 anos.