Série da Netflix sobre Bobby Kennedy é de arrepiar

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Foi lançada em abril uma nova série documental da Netflix sobre a trajetória política de Robert Francis Kennedy, conhecido como Bobby Kennedy, que foi coordenador da campanha presidencial vitoriosa em 1960 de seu irmão, John Fitzgerald Kennedy, foi Procurador Geral dos EUA na gestão de seu irmão, foi senador, e foi candidato à presidente nas prévias do Partido Democrata para as eleições de 1968.

A série chama-se Bobby Kennedy Para Presidente, possui 4 episódios de aproximadamente 1 hora cada, e é composta de muito material audiovisual da época, com imagens chocantes, tanto de bastidores, como de eventos públicos e violentos. A abundância de imagens do senador, e de figuras como Martin Luther King, criam uma sensação calorosa de assistir a fatos determinantes da história americana e do mundo.

Os anos 60 nos EUA são tema de muitos filmes e outros tipos de expressões artísticas, talvez porque parecem concentrar fatos históricos e culturais que condensam todas as contradições daquela nação que se tornou o centro do mundo, a Nova Roma vitoriosa nas duas Grandes Guerras Mundiais, herdeira do Império Britânico. Evidentemente, foi uma época de rupturas importantes em todo o mundo, desde golpes militares na América-Latina, até o maio de 68 na Europa, e a guerra do Vietnã.

É a década na qual completaram-se 100 anos da Guerra de Secessão, da 13ª Emenda à Constituição dos EUA que pôs fim à escravidão e do assassinato do Presidente Abraham Lincoln em 1865. A série aborda justamente 4 assassinatos políticos, o de Bobby é o clímax, que compõem o quadro dramático dos anos 60, dessa nação dilacerada pelo racismo.

Em 1963, o Presidente John F. Kennedy  foi assassinado. JKF, como era chamado pela imprensa, travou batalhas importantes pela consolidação dos direitos civis nos EUA. Atuou, junto de seu irmão Bobby, para que Martin Luther King fosse solto após ser preso em uma manifestação. Enviou tropas federais para impor à força a garantia de que alunos negros pudessem se matricular e cursar universidades dos estados do sul, que mantinham sistemas de segregação racial. Em episódio crucial, o governador do Alabama declarou que impediria pessoalmente dois alunos negros de se inscreverem na Universidade do Alabama, numa tentativa de dissuadir o governo federal de enviar tropas para coagir fisicamente um governador de estado, mas o Presidente Kennedy, e seu irmão, o Procurador Geral, não recuaram, e garantiram a inscrição dos alunos. JFK foi atingido por dois tiros dentro de um carro ao fazer um desfile pelas ruas de Dallas no Texas, ao lado de sua mulher.

John e Bobby Kennedy na Casa Branca
Os irmãos Kennedy na Casa Branca

Em 1965, Malcolm-X foi assassinado. Líder da Organização para a Unidade Afro-Americana, Malcolm-X era defensor do nacionalismo negro americano, do socialismo, da autodefesa dos negros perante a violência dos brancos, e também se converteu ao islamismo. Manteve importantes relações e divergências com diversos movimentos negros dos EUA, com o Partido dos Panteras Negras e a Conferência da Liderança Cristã do Sul de Martin Luther King. Malcolm-X foi morto com 16 tiros dentro da sede de sua organização, em Nova York, na frente de sua família.

Em 1968, no mês de abril, Martin Luther King foi assassinado. Autor do famoso discurso “I Have a Dream” na Marcha para Washington, o pastor manteve relações intensas com os Kennedy e com o sucessor de JFK, Lyndon B. Johnson, que em 1964, com apoio de Bobby, conseguiu aprovar a lei de direitos civis enviada por seu antecessor, e impôs finalmente o fim da segregação racial no sul do país. Martin Luther King foi alvejado na sacada do motel em que estava hospedado em Memphis, Tennessee, onde lideraria uma marcha pelos direitos civis.

Martin Luther King, Jr. and Civil Rights Leaders with Attorney General Bobby Kennedy and Vice President Lyndon B. Johnson
Martin Luther King, o Procurador Geral Robert F. Kennedy, o Presidente Lyndon B. Johnson, e outras lideranças do movimento pelos direitos civis

Também em 1968, em junho, dois meses depois de Luther King, Bobby Kennedy foi assassinado. A série enfatiza as posições firmes de Kennedy como Procurador Geral; no combate à máfia, ele confrontou energicamente Jimmy Hoffa, dos Teamsters, o sindicato nacional dos caminhoneiros, cujo desaparecimento nunca foi esclarecido e atribuído às suas relações com o crime organizado; e na defesa dos direitos civis em consonância com a política de seu irmão. Após a morte de JFK, Bobby permanece pouco tempo no governo de Lyndon Johnson, apesar de ajudar na votação da lei dos direitos civis no Congresso, Kennedy sai da administração e passa a criticar a falta de políticas sociais para as populações em situação de miséria nos EUA e também se opõe à guerra do Vietnã.

Ele transfere sua residência para Nova York, é eleito senador por este estado em 1965, e começa a viajar pelos EUA denunciando a pobreza e desigualdade social no país mais rico do mundo. Enquanto senador, Bobby apoia a greve dos trabalhadores rurais da Califórnia que em sua maioria vem do México em busca de empregos precários para fugir da miséria em seu país. Sua popularidade entre negros e mexicanos cresce avassaladoramente, seu discurso social é ainda mais radicalizado ao denunciar os gastos militares estratosféricos e as mortes dos jovens negros no Vietnã.

How labor activist Cesar Chavez went on a hunger strike and turned Bobby Kennedy into a fan
Bobby Kennedy com César Chávez, ativista pelos direitos civis dos hispânicos nos EUA, que realizava uma greve de fome em protesto à repressão que os trabalhadores rurais estavam sofrendo
Bobby Kennedy em campanha em Detroit
Robert F. Kennedy em campanha em Detroit

Em 1968, anuncia que pretende concorrer à presidência pelo Partido Democrata. Após algumas disputas em estados menores, Kennedy vence as primárias no estado da Califórnia, e após o discurso da vitória no hotel Ambassador em Los Angeles, o senador é levado pela cozinha para deixar o hotel, e, enquanto cumprimenta os trabalhadores, leva dois tiros na cabeça em meio a multidão. Bobby Kennedy chegou a ser operado, mas morreu no hospital. As fotos de seu corpo ensanguentado, sendo amparado por um cozinheiro mexicano, são de tirar o fôlego.

Apesar da narrativa abertamente favorável, enfatizando a trajetória política de esquerda dos Kennedy, e de Bobby em especial, o documentário da Netflix não deixa passar em branco o papel que eles cumpriram em prol do imperialismo norte-americano e da perseguição aos movimentos sociais. A participação de JFK nas articulações do golpe de 1964 no Brasil não é citada, mas é deixado claro que a administração dele escalou vertiginosamente a violência no Vietnã, além de patrocinar a invasão à Baía dos Porcos em Cuba na tentativa de sufocar a Revolução Cubana. No caso de Bobby, é mostrada a assinatura dele, como Procurador Geral, nas ordens solicitadas por J. Edgar Hoover, para que o FBI grampeasse Martin Luther King, e inclusive o próprio Kennedy aparece defendendo as gravações como instrumentos necessários para a manutenção da ordem no país.

A série é bem dirigida, as imagens são cirurgicamente escolhidas e conectadas. A narração é indireta, feita com as falas de entrevistados que conviveram com os Kennedy, como o emocionadíssimo John Lewis, liderança negra do movimento pelos direitos civis na época, e atualmente deputado na Câmara dos EUA pelo estado sulista da Geórgia. Não há outros grandes méritos artísticos ou políticos na série, mas apenas como acervo de fatos catalogados em imagens e sons, para que nós, 50 anos depois, possamos olhar para esses acontecimentos, já vale a pena.

As imagens compiladas em Bobby Kennedy para Presidente são indispensáveis (mas não suficientes, obviamente) para compreender os EUA da metade do século XX, e como chegaram ao século XXI, no qual elegeram Barack Obama, negro com discurso social acentuado, mas que terminou de devastar o Iraque e espionou o Brasil, outros países e inclusive seus próprios cidadãos, aplicando uma doutrina de choque para mudanças de regime e controle social. Em seguida, foi eleito Donald Trump, empresário branco de cabelo quase laranja, que teve apoio da nova direita abertamente racista, a chamada “Alt-Right”.  Esses 4 homens assassinados nos anos 60 continuam expressando essas contradições que se transformam, mas não desparecem, e constituem os EUA.

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