Tatiquês, elitismo e vira-latismo: expressões da imprensa esportiva no Brasil

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Semana passada começou com um debate muito bom proposto pelo excelente historiador e jornalista Lúcio de Castro em seu portal, pontuando ele sobre as impropriedades de uma seita que tem ganhado espaço na análise do futebol, a seita do tatiquês — ou a Igreja do Último Terço da Amplitude Direcional como genialmente cunhou o caro Wagner, um apaixonado atleticano.

A argumentação do Lúcio é não apenas correta, mas até bastante óbvia — e às vezes o bom analista é aquele que enxerga as obviedades que, de tão expressas e naturalizadas, as pessoas passam a ignorar. É imperativo para o trabalho de qualquer comunicador conseguir se fazer… comunicar. Dialetos, gírias e o uso de uma retórica específica de uma tribo são coisas que deviam ser evitadas na função jornalística. Pelo simples fato de que ela exclui. O bom comunicador não é o que se faz entender por meia dúzia. Mas por todos aqueles que se põem a ouvi-lo e/ou lê-lo. Não é difícil compreender, não é?

Mas a reação de parte da galera do tatiquês à óbvia constatação do seu colega, com alguns recorrendo a ataques ad hominem, sugerindo portanto que não é um debate de ideias sobre a comunicação, mas de vaidades, esvaziando pois a crítica feita, expressa mais do que os adeptos ao tatiquês gostariam. Ela revela que a comunicação difícil, pernóstica, excludente, é mais do que um meio. É também a mensagem. A mensagem de quem se entende melhor e mais bem preparado que os outros. Que se entende acima dos colegas e da patuléia que os assiste, muitas vezes acusada inclusive de não saber ver futebol.

Não que tal fenômeno não exista em outras partes do mundo. Mas é particularmente curioso que no Brasil isso tenha se disseminado de uma maneira tão maciça em tão pouco tempo. Na Inglaterra, na Alemanha ou mesmo entre nossos vizinhos argentinos e uruguaios há publicações mais específicas voltadas para quem tenta se apropriar de conceitos táticos e mais específicos do jogo. Só que mesmo elas tentam ser didáticas. Explicam em vez de complicar. Por que aqui é diferente?

Tempo atrás diante da zombaria de um jornalista com um atleta o comentarista inglês Tim Vickery, que escreve pra BBC Brasil e faz participações especiais no Sportv, condenou o ato e fez uma interessante ponderação: a imprensa esportiva no Brasil é majoritariamente de classe média; o torcedor e o jogador em sua grande maioria têm origem humilde. Num país que o recorte de classe é tão explícito, indigno, brutal e com seu caráter colonial de casta, não é difícil compreender essa relação de quem por ter uma origem mais abastada se vê como superior àqueles cuja existência é uma guerra diária em prol da própria existência. Esse é o Brasil. Cuspido na nossa cara todo dia, até nas nossas diversões cotidianas e naquilo que ele carrega de profundamente popular.

No entanto essa relação do jornalismo esportivo, uma grande parte dele, e o elitismo vai muito além apenas da falta de consideração com o povo, com as Marias e os Josés que têm durante aqueles 90 minutos a possibilidade de fugir nem que seja um pouquinho da vida difícil que lhes é imposta. A coisa vai inclusive na defesa de políticas que afastem, que segreguem, que expulsem os pobres dos estádios e de suas paixões. Não nos façamos de rogados. Quantas não foram as vezes que ligamos a televisão para assistir um empolgante Real Madrid e La Corunã (sim, sem nenhuma ironia aqui. Já foi empolgante. A obscena discrepância hoje ignorada por quem adora apontar o dedo para as coisas de cá é algo novo) e não ouvimos o narrador e o comentarista elogiar aqueles torcedores todos engravatados se comportando como platéia (algo que também é novo na Europa, tem uns 30 anos) em estádios modernos, limpos e cheirosos?

É o velho eliminar os problemas da pobreza eliminando ou excluindo os pobres. No futebol isso se popularizou com uma política conservadora tatcherista que foi disseminada por toda a parte. Sugiro fortemente a leitura do livro infelizmente ainda não traduzido para português do Peter Caton “Stand Up Sit Down: A Choice to Watch Football”. Ele narra com grande felicidade o começo do processo de gentrificação e padronização dos estádios ingleses, matando parte da sua alma e excluindo os trabalhadores, tendo como justificativa os recorrentes casos de violência e o impacto da Tragédia de Hillsborough em 1989 quando mais de 90 torcedores morreram pisoteados.

Esse discurso vendido durante anos é sim corresponsável pela morte do nosso Maracanã, pela política de afastamento do pobre do estádio com programas elitistas de sócio-torcedor e outras coisas mais que assistimos com olhos de passividade, a mesma com que constatamos a degradação da nossa frágil democracia e o avanço de forças anti-populares. De novo: não nos façamos de rogados. Se você vir um tatu sobre um toco, amigo, alguém botou o tatu lá. Porque tatu não sobe em toco. Todas as mazelas acima expostas e outros processos mais que vemos se aprofundando não é acaso da natureza. Tem as digitais de muita gente. De parte da imprensa de mentalidade elitista, inclusive. No esporte e fora dele.

Para me encerrar, preciso pontuar um aspecto que também é marca da turma do tatiquês: a defesa de que o futebol se resume em muito à tática e seu aspecto teórico. E há uma historicização desse processo que de novo revela seu caráter elitista e, como é marca de setores elitizados daqui, o vira-latismo impregnado. A ideia é simples: se a tática é o aspecto mais importante e como o Brasil nunca foi reconhecido como lugar onde treinadores com grande repertório tático vicejaram, o futebol brasileiro é pior. E mais: a ideia de que o futebol evoluiu para melhor, se tornou mais complexo, logo o jogo de hoje é superior em tudo ao passado. Assim sendo, nessa época que o nosso futebol já não brilha tanto e os nossos grandes ícones são do passado, não apenas o futebol brasileiro é pior como nossos ídolos foram superados pelos de agora, que não são brasileiros e batem recordes atrás de recordes em um contexto muito específico pós Lei Bosman (que falei a respeito no texto sobre neoliberalismo e futebol).

Episódios marcantes recentes que foram imensamente celebrados por essa galera foram a vitória do Barcelona sobre o Santos em 2011 e o 7 a 1 da seleção alemã sobre o Brasil. Tais eventos mostrariam claramente que tudo daqui estava superado e ruim. Não importava se o Muricy tivesse feito uma preparação muito ruim para aquele torneio e tenha escalado a equipe muito mal – o que a meu ver também não mudaria muita coisa, mas poderia reduzir o passeio. O Barcelona era muito superior. Tecnicamente muito superior. Não só tática. E na histórica hecatombe de 2014 o péssimo trabalho do Felipão, que também como Muricy nunca foi conhecido por ter trabalhos com muita elaboração tática. Vinha ele antes de assumir a seleção, por exemplo, de uma campanha muito ruim com o Palmeiras.

Outro caso bem marcante foi a entrevista do ex-lateral alemão Paul Breitner na ESPN, em que o mesmo proclamou que o futebol brasileiro estava atrasado. Um europeu dizendo que o futebol daqui estava superado? O vira-latismo não podia ser melhor contemplado. Pouco importa se o então entrevistado tenha proferido uma pletora de absurdidades, como a de que a Bundesliga já era a principal liga do mundo, que a Premier League estava ultrapassada, que Bayern e Borussia Dortmund seria o maior clássico mundial dentre outras tantas patacoadas que se vistas hoje só podem causar risos quando não constrangimento. Imagine o Pelé falando algo semelhante, o que não diriam…

Paul Breitner estava errado naquilo que os membros do tatiquês captaram (a parte dos times brasileiros estarem piores é inegável, os melhores não ficam mais aqui…). Nunca os nossos técnicos em quantidade dominaram e foram tão conhecedores de tática. E por uma mera questão assim como ocorreu na Itália nas palavras do técnico tricampeão mundial em 82 Enzo Bearzot: necessidade. Certa feita lhe questionaram porque na Itália os treinadores davam tanto valor à parte tática. Respondeu: “não tínhamos o talento sulamericano. E estávamos atrás da disciplina alemã. Precisávamos apostar em algo pra ser os melhores novamente.

O Brasil já foi vice-campeão do mundo em 98 comandado por um técnico absolutamente superado. Em 2002 foi campeão com sobras com um treinador que sempre foi conhecido por ser um grande motivador. Em 2014 o mesmo com um trabalho péssimo foi semifinalista e poderia ter saído de forma mais honrosa se tivesse incrementado alguns elementos ao seu trabalho, coisa simples que não requereria nenhuma sofisticação muito maior. Ora, é óbvio: o talento ainda é fundamental no futebol. Não que se prescinda da tática, mas com um time minimamente organizado os talentos aparecem. Ou alguém acredita aqui que o Zidane é um gênio como técnico e que conseguiu o que nenhum antes dele na era moderna conseguiu, ser bi em sequência da Champions, porque é um fenomenal conhecedor de tática? Ora… Ele tem muitos talentos e achou uma forma de jogar. Foi por isso que aqui nossos treinadores construíam carreira sem precisar de elaboração maior no campo: havia talentos. Em quantidade. Com Lei Bosman e Lei Pelé, e o Brasil sendo colocado no ridículo papel de exportação de pé-de-obra além da morte matada de times do interior, a escassez obrigou que passassem a investir mais no aspecto tático. De novo: necessidade.

A parte curiosa e irônica é que as melhores análises que vi sobre a campanha brasileira na Copa de 2014 e sobre o histórico confronto com a Alemanha no Mineirão vieram do José Trajano, do Mauro Cezar Pereira e do já citado Tim Vickery. Os dois primeiros nos Linhas de Passe que se seguiram durante o mundial denunciando as pobrezas do time do Scolari desde o começo da competição; e o segundo em um Redação Sportv quando falou do desempenho desastroso do David Luiz naquela partida, saindo de posição e deixando alemães sempre em vantagem numérica no setor – um fator que não explica a derrota, mas explica o 7 a 1. Todos os três se comunicam bem, são compreendidos por todos, entendem do jogo e passam longe do tatiquês. Como bons jornalistas que são.