Trabalhismo e revolução: O problema fundamental da memória para a tradição

Trabalhismo e revolução, memória e ideologia
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Em primeiro lugar, neste dia significativo, gostaria de desejar boas festas a todos e congratular, em especial, tanto o Portal Disparada, por permitir que ocorra um debate teórico e ideológico tão aprofundado, quanto estender os parabéns para todos os debatedores e articulistas que com este veículo colaboram.

Recentemente foi publicado um artigo, aqui mesmo no Disparada, no que parecia ser uma resposta a mobilização de certas bases pedetistas identificadas com o socialismo e com a concepção de revolução brasileira construída no século XX. Tal texto, gerou a oportunidade para um debate profundo sobre o Trabalhismo Brasileiro, debate este, que decidi participar submetendo o texto “Trabalhismo e revolução: Um debate que não deve ser varrido para baixo do tapete”, defendendo pontos que já havia difundido em meu texto anterior, “Caminho de ação Trabalhista”, também publicado aqui, no Disparada.

Seguindo com o fluxo ritmado da troca de argumentos, hoje, véspera de Natal, foi publicada uma tréplica sobre o tema, que esmiúça e aprofunda nas proposições do texto que iniciou este debate. Sobre esta, acredito ainda ser necessário responder alguns pontos, que ao meu ver, não podem escapar da crítica, portanto, submeto o presente texto.

Sobre o problema fundamental da disputa pela memória

Antes de iniciar esta reflexão, é necessário que se faça uma importante ressalva, para evitar qualquer equívoco, como na brincadeira infantil conhecida como “telefone sem fio”, que o objeto de análise do texto anterior foi o Trabalhismo Brasileiro, em abstrato. É importante ressaltar para que não existam incompreensões, que nunca esteve em questão a posição institucional do glorioso Partido Democrático Trabalhista, fundado por Brizola, para ser o refúgio do povo, um partido de massas, capaz de abrigar as mais variadas correntes de pensamento da classe trabalhadora, e como pactuado na Carta de Lisboa, levar o Trabalhismo a ser o caminho brasileiro para o socialismo. Fato que, não se pode nunca, em hipótese alguma, ser ignorado.

Após explicitada a intenção, e limitando qualquer futura incompreensão, tem inicio esta breve exposição. Em seu célebre texto chamado “Teses sobre o conceito da história”, publicado em 1940, o renomado filósofo marxista Walter Benjamin, lança as bases para uma das mais belas elaborações teóricas do ramo da filosofia da história.

Nesta obra, Benjamin, alude para o fato da duplicidade da construção histórica, que é, também, estória. Construída por nossos atos no presente, mas enquanto organismo vivo, dependente da transmissão da memória, e sobretudo, de qual classe tem o monopólio de escrever a história. O autor propõe, então, o que pode ser entendido como a existência de uma dialética da lembrança e do esquecimento, operada pela classe que detém tal monopólio.

Para além disso, Benjamin, de sua forma característica, em sua sexta tese sobre a história, também observa como o mesmo processo, por vezes, ocorre dentro de tradições e ideologias:

Tese 6: Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
Walter Benjamin, “Teses sobre o conceito da história, 1940” — Tese número 6.

Sobre tal reflexão, e em resposta ao referido texto, é importante destacar que, estão corretas as citações de autores do quilate de Ângela de Castro Gomes, cujo material historiográfico deve ser cuidadosamente estudado por todos os expoentes do movimento trabalhista, bem como o texto daquele que é conhecido como o primeiro quadro doutrinário da tradição do Trabalhismo Brasileiro, Alberto Pasqualini, cuja a memória, para todos que almejam uma verdadeira compreensão da história do trabalhismo no Brasil, deve ser preservada e tratada com muito carinho. Dito isso, não poderia deixar de fazer algumas ressalvas:

O movimento trabalhista, e sua formulação teórica, não surgem, como os apologistas de visões idealistas da história poderiam afirmar, de personalidades ou pessoas, mas de demandas e agendas sociais bem delimitadas e reconhecidas, como bem afirma o historiador marxista Moniz Bandeira, fiel escudeiro de Brizola, em seu livro “Trabalhismo e Socialismo no Brasil”, no capítulo relativo a criação do antigo PTB. Pensar diferente disso, seria simplificar as coisas.

Nesse sentido, os critérios e marcos temporais utilizados nos textos aqui respondidos, por demais metafísicos, ignoram uma multiplicidade de fatores e causas, terminando por anular o nexo histórico, e delimitando o debate na figura de um teórico em especial.

Se estivéssemos tecendo este debate em 1945, provavelmente não haveria nada a declarar.

Mas será mesmo que, em 2020, já não tenha ocorrido um aprofundamento deste debate?

A tradição intelectual do Trabalhismo Brasileiro se encerra, então, em Pasqualini, e vivemos em um hiato de 75 anos, onde não existiram, por exemplo, Darcy Ribeiro, Alberto Guerreiro Ramos, ou Theotônio dos Santos?

Espanta que o retorno a Pasqualini, pareça se dar, exatamente para ignorar o que veio após este, em um outro contexto, onde as contradições em nossa sociedade afloravam. Porque o foco em Pasqualini, mas escolher não citar, por exemplo, o Brizola do pré-64?

Se apoderar da própria história, é ato de rebeldia, que não deveria ser deixado de lado sobretudo por nós, trabalhistas, os mais atingidos pela dialética da lembrança e do esquecimento operada pela classe dominante brasileira, visto que, em parte, a funesta ditadura militar, cumpriu papel lógico de frear o avanço do antigo PTB, mas sobretudo, atingir e macular sua história, lhe negar memórias, perseguindo seus principais militantes e teóricos, sobretudo, evidentemente, os mais radicais e afinados com a perspectiva da construção do socialismo no Brasil, bem como pensadores práticos da questão revolucionária. Ironicamente, estes são os mesmos apagados e desbotados nas memórias daqueles que este texto pretende responder.

Exatamente nesse sentido, e novamente respondendo sobre trabalhismo e revolução, trago para os leitores deste debate, o trecho abaixo, que figura a página 33, do livro “Trabalhismo e Socialismo no Brasil” de Moniz Bandeira, que explica sobre a posição de Brizola, no já referido período, após extensa reflexão sobre o caso cubano, e é aparentemente esquecido por aqueles que fazem força para não conceber a possibilidade de existência de um trabalhismo revolucionário:

A execução das reformas, reclamadas pelo desenvolvimento do Brasil, só seria possível com o estancamento do processo espoliativo, à base de profunda revisão nos termos de intercâmbio com os Estados Unidos. E isso acarretaria a sua reação. Brizola não se iludia. Estava já consciente de que a estrutura interna da sociedade brasileira e o processo espoliativo, dirigido pelos Estados Unidos, eram “partes inseparáveis do mesmo sistema“.

E dizia:

Reconheço e proclamo que nos encontramos numa ordem capitalista, recolhendo migalhas. Mas situo-me entre aqueles que desejam abominar corajosamente, decididamente, os males do capitalismo. E, ainda mais, situo-me entre os que julgam que, para enfrentarmos os problemas que nos afligem que infelicitam nossas grandes massas populacionais, não poderemos fugir a muitas soluções de cunho nitidamente socialista.”[146]
Brizola advertia que ou as reformas se realizavam democraticamente, ou o povo brasileiro irromperia pelo caminho da insurreição, o que ele considerava um direito[147], não somente contra a tirania, mas também para libertar-se da fome, da miséria e do atraso.

Moniz Bandeira, Trabalhismo e Socialismo no Brasil, Página 33.

Cabe dizer, não existe nenhum problema em defender os pontos de vista de Pasqualini, pelo contrário, mas, como apontado anteriormente em meu outro texto, “Caminho de ação Trabalhista”, é mais que importante a compreensão de que não podemos nos esquecer nunca que a tradição é algo vivo, e que tem uma história e um movimento de construção, por parte daqueles que erguem seu estandarte ao longo das eras, enquanto se relacionam com as demandas materiais da classe trabalhadora em cada período histórico.

Como sabemos, o Trabalhismo Brasileiro enquanto ideologia percorre todo um movimento histórico, refletindo, fazendo autocríticas, e constantemente se superando em termos de concepções, de forma que, o trabalhismo pensado por Pasqualini, foi extensamente submetido a críticas internas, e superado ideologicamente por seus sucessores intelectuais dentro do partido, que, em suas próprias concepções, como ocorre em toda escola de pensamento, ainda aludem aos pontos positivos do primeiro, sem o temor de criticar o que consideravam erros e equívocos, para com isso, avançar com a teoria.

Apontar para momentos longínquos da história da tradição do trabalhismo brasileiro descontextualizando seu nexo histórico, a utilizando, porém, apenas como um compilado de argumentos prontos para posicionamentos, que no atual contexto, são, no mínimo dúbios e vacilantes, para além de um equívoco, é, também, uma espécie de revisionismo. Que, como todo revisionismo, mina a capacidade crítica de compreensão do real, e enfraquece as bases teóricas do movimento trabalhista.

Por Daniel Albuquerque, Niterói, 24 de Dezembro de 2020.

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