Ataque a Glenn revela o fascismo jurídico do MPF contra toda a imprensa brasileira

Greenwald, que é editor do site Intercept Brasil, foi denunciado nesta terça-feira, 21, pelo Ministério Público Federal em Brasília, no âmbito da Operação Spoofing Evaristo Sá/AFP
Greenwald, que é editor do site Intercept Brasil, foi denunciado nesta terça-feira, 21, pelo Ministério Público Federal em Brasília, no âmbito da Operação Spoofing Evaristo Sá/AFP
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O ataque do Ministério Público Federal a Glenn Greenwald mostra que a polêmica acerca da criação do juiz de garantias vem eclipsando um problema maior talvez e tão grave quanto a possibilidade de um juiz faccioso. É uma questão clássica, ao mesmo tempo antiga e atual da política – qual seja, quem controla os controladores.

No século V a. C, Aristóteles já encarava como dilema o critério da escolha dos juízes. Não havia fórmula segura para se evitar injustiças, assim como ainda não existe na atualidade. Pelo que já se debateu até agora sobre a criação do juiz de garantias, tal novidade parece mais fácil de ser implantada e, quem sabe, pode estar funcionando como cortina de fumaça para outra necessidade não resolvida.

Embora a dissonância entre o jurídico e o justo não seja uma jabuticaba brasileira, hoje, porém, no caso da nossa democracia doente, com suas cicatrizes abertas de escândalos, uma das questões nevrálgicas é a ausência de mecanismos de accountability sobre o Ministério Público.

Essa questão vem sendo problematizada pela ciência política já há algum tempo, conforme mostrei em outro texto meses atrás. Muito antes dos descalabros que vieram à tona com a Vaza-Jato, o excessivo e descontrolado poder do Ministério Público já fora objeto de indagações e críticas não de políticos em geral ou dos acusados de corrupção, mas de pesquisadores da academia.

A indagação básica e norteadora diz respeito às contradições que fortaleceram o Ministério Público em 1988 e por que os políticos abdicaram de instituir mecanismos de accountability sobre o fiscal da lei naquele momento do fim da redemocratização do país.

Entre os trabalhos notáveis da ciência política nos últimos 15 anos sobre o tema, três são do pesquisador Fábio Kerche. Em suma, o cientista político mostra o desenho institucional resultante do processo constituinte, num contexto em que estavam em jogo a garantia dos direitos fundamentais e a criação de instrumentos para coibir abusos do estado como os praticados durante a ditadura civil-militar (1964-1984).

Já Alzira Alves Brandão, em seu livro “O que é o Ministério Público” (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010), traz uma ironia não intencional da autora quando atribui ao jurista Miguel Reale Jr., justo quem, algo que ele teria afirmado muito antes de ser um dos protagonistas do golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016.

Reale teria dito, numa matéria publicada em jornal, que “a falta de critérios objetivos para as ações do Ministério Público permite que promotores e procuradores desrespeitem a lei e manipulem investigações de acordo com suas convicções pessoais (O Globo, 1/4/2004). A ironia, na verdade, era é a “hybris” do MP que o processo constituinte de 1988 não imaginou na época e vem se revelando com ódio reacionário nos últimos 15 anos.

Para além dos benefícios da instituição do juiz de garantias, cabe lembrar que a maior parte da nervura de um processo judicial é determinada pelo Ministério Público. É comum ouvirmos que o Poder Judiciário é inerte em seu poder-dever jurisdicional. Ao mesmo tempo em que somente ele tem jurisdição em todo o território nacional, com seu poder imperativo e impositivo, não pode nunca se furtar ao dever da prestação jurisdicional quando procurado. Entretanto, para agir, sempre tem que ser provocado.

Mesmo quando o Ministério Público oferece uma denúncia equivocada, com erros, confusa ou incompleta, que pode nem ser aceita ou ser arquivada, o estrago na reputação da pessoa denunciada já está feito para o resto de sua vida. Sem falar, claro, nos embaraços na vida política e/ou profissional, dependendo da posição do denunciado.

O caráter político do oferecimento da denúncia tem dupla face: por um lado, os motivos subjetivos eventualmente questionáveis do conteúdo da denúncia, camuflando interesses inconfessáveis de forças em jogo, bem como a forma como ela é elaborada e oferecida e sua oportunidade; de outro, a sua divulgação para a opinião pública, de maneira discricionária e atentatória contra a imagem das pessoas, na construção e chancela de supostas verdades midiáticas, como a Vaza-Jato mostrou sobejamente.

Nesse sentido, o que o Ministério Público Federal está fazendo com o jornalista do The Intercept, afrontando, na maior cara dura, o Supremo Tribunal Federal, nada mais é do que uma ameaça a todos os jornalistas e meios de comunicação do país.

Com sua denúncia contra Glenn Greenwald, o MPF mostra firme em sua disposição de legitimar o espírito fascista de determinados setores do mundo jurídico e do governo perante a sociedade. Leigos não sabem que jornalistas podem, por lei, resguardar suas fontes – e o debate sobre o assunto nos Estados Unidos põe o Brasil no chinelo ou no jardim da infância da trajetória de construção da liberdade de expressão e opinião. Lá, provavelmente, integrante do MP que oferecesse denúncia sem base legalmente justificável, seriam devida e rapidamente processado.

Trata-se de um acinte sem tamanho que precisa ser enfrentado com mobilização da Associação Brasileira de Imprensa, sindicatos de jornalistas de todo o país, além da Ordem dos Advogados do Brasil e de todos os setores preocupados em reverter a doença que se abateu sobre a democracia brasileira. Com MPF, Sérgio Moro, Dellagnol e delegados de polícia cheio de sangue nos olhos, Bolsonaro não precisa fazer esforço algum para consolidar suas intenções e ações de caráter fascista.

Amanhã ou depois, qualquer cidadão pode ser denunciado pelo Ministério Público, por qualquer motivo, dependendo da cartola subjetiva dos ungidos por essa nuvem pesada da ideologia jurídica obscurantista: essa gosma que é mais do que juspositivista – e, sendo de cunho neofacista, nem o positivismo jurídico mais reacionário defenderia. Jornalista brasileiro que apoia esse tipo de ação do Ministério Público só pode ser pusilânime ou de caráter duvidoso que não honra a missão profissional.

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